Projeto do governo define prazos para adoção de crianças e adolescentes
O governo federal quer mudar as regras de adoção de crianças e adolescentes no país, colocando prazo para a conclusão do processo. O objetivo é reduzir o número delas nos abrigos e a espera dos pretendentes para adotar.
Anteprojeto de lei do Ministério da Justiça prevê que o trâmite seja fixado em 90 dias para o estágio de convivência entre os pretendentes e a criança, seguido de 120 dias para a conclusão da adoção. As duas etapas poderiam ser prorrogadas por iguais períodos.
Se for seguida a proposta do governo, essas duas fases poderiam levar no máximo um ano e dois meses.”Hoje não há prazo definido, o que gera insegurança nas famílias”, afirma a diretora de assuntos legislativos do ministério, Clarice Oliveira.
“Ninguém valoriza tanto uma certidão de nascimento quanto uma família adotiva”, afirma Sara Vargas, 45, mãe de quatro filhos, três adotivos, sobre o documento entregue com o nome dos pais alterado ao fim do processo que, em seu caso, levou quatro anos desde que recebeu a guarda provisória.
O tema, no entanto, gera preocupação entre entidades, que temem que os prazos para a adoção se sobreponham aos direitos das crianças.
ADOÇÕES NO PAÍS – Total de adoções de crianças e adolescentes por ano*
ESTRANGEIROS
As propostas também estipulam regras para a entrega voluntária de bebês e estimulam a adoção internacional, feita por estrangeiros. Para esse último caso, prevê a redução no tempo mínimo exigido de convivência prévia, que passaria de 30 para 15 dias. O máximo seria de 45 dias (hoje, não há).
Outra sugestão é que cada criança com mais de um ano sem ter sido adotada no país seja encaminhada para possível adoção internacional, “independentemente de decisão judicial” para isso. Hoje, isso depende de aval do juiz.
Essa proposta também causou reações entre especialistas e entidades ligadas aos direitos das crianças. “Vai acontecer sem o Judiciário acompanhar? Justamente nesse caso que é o que mais precisa?”, afirma Dayse Bernardi, do Neca (associação de núcleos de pesquisa sobre criança e adolescente).
Já Clarice afirma que a flexibilização serve apenas para iniciar a busca de pretendentes. Para ela, a medida pode ser uma alternativa diante do descompasso entre o perfil desejado pelos pretendentes a adotar e o das crianças aptas a serem adotadas. Dados do CNJ mostram que a maioria dos pretendentes no país ainda expressa a vontade de adotar crianças mais novas –57% delas, porém, têm mais de dez anos.
“Os pretendentes não residentes no Brasil estão mais abertos para adotar crianças mais velhas e com irmãos, perfil que encontra mais dificuldades para adoção”, diz Clarice. Segundo ela, após a consulta pública, que já tem 400 contribuições, o governo deve enviar a proposta ao Congresso ainda neste ano.
As novas propostas também trazem regras para mães que decidem fazer a “entrega voluntária” dos filhos à Justiça. O texto sugere que o “suposto pai” seja intimado em até cinco dias sobre a possibilidade de manter a criança.
O projeto também amplia a possibilidade da “adoção direta” –isso ocorre quando o interessado faz um pedido específico à Justiça para adotar uma criança, fora da fila de adoção. Pela lei, esse pedido só vale se feito por padrasto ou madrasta, parentes ou quem já tem a tutela ou guarda. A proposta abre espaço a pessoas com quem a criança “tenha vínculos de afinidade”.
FALTA DE ESTRUTURA
Ao mesmo tempo em que apontam pontos positivos no projeto do governo, especialistas e entidades que atuam na área de infância ouvidos pela Folharelatam preocupação em relação a alguns trechos da proposta para mudar o processo de adoção.
A maioria afirma ver como positiva a intenção de acelerar a conclusão do processo, mas diz que o principal problema hoje é de falta de estrutura e de equipes habilitadas para analisar os casos. Outros avaliam ainda que, em algumas situações, os prazos sugeridos para acelerar o processo de adoção também podem, na prática, acabar por inviabilizá-lo.
É o caso da medida que estipula 90 dias para estágio de convivência. “É como se tivesse que em três meses ter dado certo. E se não tiver? A criança é devolvida como uma mercadoria que provo e vejo se gosto, e se não, devolvo?”, questiona a especialista em psicologia jurídica Dayse Bernardi. Segundo ela, a criança acolhida por muito tempo nem sempre aceita ser adotada imediatamente. “Muitas vezes vai provocar a família para ver se de fato será acolhida.”
Fábio Paes, presidente do Conanda (Conselho Nacional de Direitos da Criança) e assessor da Aldeias Infantis SOS, que atua em serviços de acolhimento, também pede cautela. “Hoje não temos uma rede preparada para prazos estipulados.”
Segundo ele, a situação traz risco de que algumas decisões possam aceleradas apenas para cumprir prazos, sem observar com cuidado a situação de cada criança ou adolescente hoje em abrigos. Já Suzana Schettini, presidente da Angaad (associação nacional de grupos de apoio à adoção), diz apoiar a proposta de trazer alguns limites máximos de espera, como concluir a adoção em 120 dias. “Hoje muitos aguardam até cinco anos.”
Paes, do Conanda, afirma que o estímulo à adoção por estrangeiros pode separar irmãos –entre 7.067 crianças e adolescentes hoje aptas à adoção, 64% têm irmãos.
Outro receio é o acompanhamento dos processos nestes países, afirma. “Há casos de frustração e negligência. Como o direito de meninos e meninas está sendo assegurado? Fora do seu país, isso pesa muito mais.”
Millen Castro, presidente da ABMP (Associação de Magistrados, Promotores e Defensores da Infância e Juventude), diz ver como positiva a tentativa de acelerar a análise de cada caso.
“Se a família biológica tiver a chance de reacolher a criança, é o ideal. Se não, seja [adoção] nacional ou internacional, mas que seja dada a chance à criança de sair da instituição de acolhimento e ter uma família de fato.”
Ele contesta, porém, a ideia de abrir espaço a pedidos para adoção de crianças com quem o pretendente “tenha vínculo ou afinidade” e que não estejam no cadastro. “O projeto acaba fortalecendo a adoção direta, que desrespeita quem está cumprindo todas as regras.”
OUTRO LADO
Questionado sobre as críticas, o Ministério da Justiça diz que os prazos propostos devem ser vistos “em conjunto com os demais dispositivos do ECA”, com base “no interesse da criança”. Sobre o problema de estrutura da rede, a pasta afirma que, nos casos em que há ausência de servidores para avaliações técnicas de cada processo, irá sugerir a contratação de profissionais especializados para fazer as análises.
Já a proposta de estimular a adoção internacional “visa dar mais chances à criança de encontrar uma família” diante da avaliação de que estrangeiros estariam mais abertos a adotar crianças mais velhas ou com irmãos.
Diz ainda que a atuação dos órgãos é garantida em todo o processo, “inclusive o acompanhamento nos dois anos seguintes à adoção”. A diretora Clarice Oliveira diz ainda que as propostas devem passar por nova análise após as contribuições da consulta pública.