Africanas reduzem as refeições e lutam para sobreviver antes de pedir ajuda ao mundo
Pela tradição, os somalis não contavam os anos em números, mas davam um nome a cada um deles que imortalizavam acontecimentos ou crises importantes.
Por exemplo, 1911 foi o ano da comida proibida, ou seja, uma fome tão extrema que as pessoas só podiam comer alimentos “haram”, proibidos pelo islã; 1928 foi o ano do registro, uma seca generalizada que forçou os somalis do Norte a finalmente se submeterem ao registro feito por seus colonizadores britânicos em troca de ajuda; 1974 foi o ano da “cauda longa”, uma seca interminável na região inteira que contribuiu para a queda de Haile Selassie.
Os episódios de fome foram tão frequentes no Chifre da África nos últimos 25 anos que não houve tempo para novas denominações poéticas.
Quando eu era criança em meados dos anos 1980 em Hargeisa, no norte da Somália, eu sofria de desnutrição. Meu cabelo era uma penugem desbotada na minha cabeça, eu era pequena e fraca. A guerra havia destruído o hospital local e minha mãe conseguiu tratamento para mim com assistentes humanitários alemães em um vasto campo de refugiados, a cerca de 32 km de distância.
Fui uma dos que tiveram sorte. Minha família tinha capital financeiro e social suficiente para garantir que eu recebesse toda a ajuda que estivesse disponível naquele Estado disfuncional e em colapso. Outras crianças devem ter morrido ou ficado com sequelas de uma desnutrição grave, tais como danos cerebrais ou desenvolvimento físico limitado.
Hoje há 6 milhões de pessoas em risco de inanição na Somália, e outras 14 milhões no Sudão do Sul, na Nigéria e no Iêmen. É a mais grave emergência desde a Segunda Guerra Mundial, de acordo com a ONU. A fome de 2011 havia atingido as áreas do sul da Somália, que são as que mais sofrem com os extensos conflitos e com a má administração; já a seca atual afetou todos os Estados no Chifre da África.
A Somalilândia depende de exportações de gado, que representam 70% de sua renda. A falta de chuvas por três anos seguidos significou que 10 milhões de cabras, ovelhas e camelos já morreram. Os preços dos alimentos escalaram e as famílias precisam decidir se ficam com seus animais, na esperança de que as chuvas cheguem e sejam fortes, ou se viram em seu próprio país, procurando ajuda em qualquer acampamento empoeirado que tenha espaço para eles.
Minha família migrou para a Inglaterra em 1986 quando eu tinha 5 anos, mas mantivemos ligações com nossa casa ancestral. Juntamente com minha família estendida na diáspora somali, ajudei a bancar uma escola primária perto da fronteira da Etiópia com a Somalilândia. A escola, que abrira quatro anos antes, atendia cerca de cem estudantes de uma comunidade pastoral perto de um assentamento chamado Camp Rooble. No ano passado, nossas discussões por e-mail sobre a escola passaram de assuntos administrativos para pedidos urgentes de suprimento de água e comida. E então os nômades tiveram de desmembrar o assentamento, abandonar a escola e procurar por água em outro lugar.
Episódios de fome sempre foram comuns no mundo inteiro, mas nas últimas cinco décadas em geral eles se limitaram à África, especialmente à África Oriental. As temperaturas se elevaram em partes já áridas do continente, em um grau Celsius no Quênia e 1,3 grau Celsius na Etiópia entre 1960 e 2006. Comunidades em toda a região relatam que as secas têm ocorrido a cada um ou dois anos, sendo que antes aconteciam a cada seis ou oito anos.
A mudança climática também é vista na África Ocidental e, quando combinada com conflitos, altas de preços dos alimentos e marginalização política e econômica, o resultado é a fome, mesmo em países tão ricos quanto a Nigéria.
As pessoas que estão enfrentando a seca e a fome não são vítimas passivas, esperando simplesmente por instituições de caridade para salvá-las. As famílias, especialmente as mulheres, fazem esforços sobre-humanos para sobreviver antes que sejam por fim forçadas a pedir por ajuda: reduzem as refeições, encontram novas profissões, vendem seus pertences, dispersam filhos e percorrem quilômetros.
Minha avó paterna, no “ano do registro”, caminhou dezenas de quilômetros por um deserto pintado de vermelho com o sangue de cabras, abatidas por suas peles antes que elas morressem e se tornassem inúteis. Ela procurou um centro de emergência em Bulhar, com meu pai amarrado às suas costas, onde foi alertada a voltar para casa, uma vez que uma epidemia havia se espalhado pelo acampamento. Não sei como os dois conseguiram, mas eles sobreviveram.
Em 2011, doadores internacionais demoraram para responder e forneceram auxílio só depois que a maioria das 260 mil vítimas da fome já havia morrido. Hoje as notícias de mortes causadas por cólera ou sede mesmo em áreas sem estradas são compartilhadas nas mídias sociais somali no mesmo dia. Jovens ativistas somali de todo o mundo criaram grupos de mídias sociais como Caawi Walaal, Abaaraha e Somali Faces, que se identificam com as vítimas da seca de uma forma visceral, familiar.
Embora tenham conseguido levantar quantias modestas de dinheiro, sua rede de voluntários locais consegue alcançar lugares remotos aonde as instituições maiores de caridade não chegam. Os jovens profissionais por trás do Abaaraha usaram uma plataforma de código aberto queniana, o Ushahidi, para reunir dados em tempo real daqueles afetados pela seca e para coordenar ações de ajuda aos somalis.
A Somália costuma ser descrita como um Estado falido, mas a fome é símbolo de fracasso tanto da comunidade local quanto da global. Os fundos necessários para prevenir a fome na Somália, no Iêmen, no Sudão do Sul e na Nigéria estão longe de serem atendidos pela comunidade internacional, o apelo pela Somália da ONU atingiu supostamente somente 57% da meta e a arrecadação insuficiente já custou vidas em todos os quatro países. O governo do presidente Donald Trump, contrário a preocupações humanitárias, está focado em intervenções militares tanto no Iêmen quanto na Somália.
Algumas semanas atrás, na Conferência de Londres sobre a Somália, sediada pelo governo britânico, 40 países enviaram seus representantes. António Guterres, o secretário-geral da ONU, descreveu a seca como a “preocupação mais urgente” da Somália, mas a segurança e a intensificação da guerra contra o Al-Shabab absorveram a maior parte da atenção.
Com o andamento do ramadã, o mês muçulmano do jejum, pessoas que estão à beira da inanição estão voltando sua fome para uma causa espiritual. Isso leva à questão de como os países muçulmanos mais ricos responderão à tragédia que ameaça seus correligionários mais pobres.
No final dos anos 1980, no começo da guerra civil somali, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos foram os primeiros a enviarem ajuda para campos de refugiados no leste da Etiópia, mas essa ajuda veio com instruções rigorosas de que meninas deveriam se cobrir e de que a liberdade das mulheres deveria ser restrita.
Talvez neste ramadã os países do Golfo possam levar mais a sério o terceiro pilar do islã, que é a caridade, do que eles levam os hijabs e as compras de armas? Ao apoiar aqueles que conseguiram sobreviver até este ponto estamos honrando o sentimento encontrado tanto no Alcorão quanto no Talmude, “Quem salva uma vida é como se tivesse salvo toda a humanidade”.
*Nadifa Mohamed, uma romancista britânica-somali, é autora dos romances “Black Mamba Boy” e “The Orchard of Lost Souls.”
Tradutor: UOL