Ex-diretor do FBI reforça tese de que Trump tentou obstruir Justiça
No depoimento aguardado desde sua demissão, há um mês, o ex-diretor do FBI (polícia federal americana) James Comey disse a senadores nesta quinta (8) que interpretou como uma “orientação” a frase do presidente Donald Trump de que esperava que ele “deixasse de lado” a investigação sobre o ex-conselheiro de Segurança Nacional Michael Flynn.
Durante a audiência de duas horas e meia no Comitê de Inteligência do Senado, republicanos tentaram pressionar Comey para que ele dissesse que não houve especificamente uma ordem para encerrar a investigação sobre Flynn –o que poderia ser visto como uma tentativa de obstrução de Justiça, crime passível de impeachment.
“Eu tomei como uma orientação”, disse. “É o presidente dos Estados Unidos, a sós comigo, dizendo: ‘eu espero isso’. Eu interpretei como: isso é o que ele quer que eu faça. Eu não fiz, mas essa foi a forma como eu interpretei.”
Na introdução que enviou ao Comitê na véspera –e acabou não lendo nesta quinta–, Comey relatou que, em um encontro no Salão Oval, no dia seguinte à renúncia de Flynn, Trump pediu que os outros presentes saíssem –inclusive o secretário de Justiça, Jeff Sessions– para que ele ficasse a sós com o então diretor do FBI.
Segundo Comey, o presidente então falou: “Ele [Flynn] é um cara bom e passou por muita coisa. Espero que você esteja disposto a deixar isso passar, a deixar Flynn de lado”.
Ao ser questionado por um senador republicano nesta quinta sobre se isso teria sido uma ordem, Comey retrucou: “Por que ele tirou todo mundo do Salão Oval? Como investigador, isso para mim é um fato muito significativo”.
O ex-diretor também disse que começou a escrever memorandos após os encontros com Trump porque estava “honestamente preocupado que ele poderia mentir sobre a natureza” da conversa.
Comey revelou ainda que passou o memorando escrito após essa conversa no Salão Oval a um amigo próximo, um professor da Universidade Columbia –Daniel Richman, que depois se identificou–, no dia seguinte à sua demissão, para que ele o vazasse ao “New York Times”.
“Eu pedi a ele porque achei que isso [a revelação da conversa sobre Flynn] poderia incentivar a indicação de um conselheiro especial [para liderar as investigações sobre o possível elo de membros da equipe de Trump com a Rússia]”, disse.
O jornal publicou a matéria no dia 16 de maio. O Departamento de Justiça colocou o ex-diretor do FBI Robert Mueller como conselheiro especial dois dias depois.
Essa também foi a primeira vez que Comey disse que Mueller tem todos os memorandos que foram escritos por ele após os encontros com Trump. Questionado por um senador se eles seriam prova de obstrução de Justiça, o ex-diretor disse que essa avaliação cabe a Mueller.
FITAS
Logo após a publicação, pelo “New York Times” da reportagem sobre o memorando com o pedido em relação a Flynn, Trump ameaçou Comey, escrevendo no Twitter que o ex-diretor tinha que se certificar de que não havia gravações das suas conversas antes de sair vazando informações à imprensa.
“Meu Deus, eu espero que existam as fitas”, disse Comey, durante a sessão desta quinta. “Liberem todas as fitas. Por mim, tudo bem.”
O ex-diretor foi questionado, inclusive por democratas, como a senadora Dianne Feinstein, por que não teria respondido a Trump, diante da suposta intimidação, que as conversas eram inapropriadas.
Comey disse ter ficado “muito chocado” para responder de forma mais dura. Segundo seu próprio relato, ele só teria dito a Trump que Flynn era, de fato, “um cara bom”.
“Talvez se eu fosse mais forte, eu teria dito”, afirmou. “Eu estava tentando lembrar de cada palavra que ele estava dizendo. Estava pensando: ‘Qual deve ser minha resposta?’ Foi por isso que fui tão cuidadoso ao escolher as palavras.”
MENTIRA E DIFAMAÇÃO
O ex-diretor começou seu depoimento com um discurso emocionado, em que afirmou que o governo Trump mentiu e difamou o FBI.
“O governo escolheu me difamar, e, mais importante, difamar o FBI dizendo que a organização estava em desarranjo, que era mal liderada e que os funcionários tinham perdido a confiança em seu líder. Isso é mentira, pura e simples”, disse.
Comey também disse que as constantes mudanças nas explicações do governo sobre sua demissão, no dia 9 de maio, o “confundiram” e “preocuparam cada vez mais”.
Ele lembrou que, por várias vezes, Trump disse só ouvir elogios sobre o seu trabalho. “Então isso me confundiu, quando vi na televisão que o presidente disse que ele, na verdade, me demitiu por causa da investigação sobre a Rússia.”
O ex-diretor decidiu não ler as seis páginas de introdução, que tinham sido divulgadas na véspera. No texto, Comey afirmava ainda que o presidente pediu a ele “lealdade”, no mesmo jantar em que perguntou a Comey se ele queria permanecer em seu posto.
“Ele me disse ‘eu preciso de lealdade’. Eu respondi: ‘Você sempre terá minha honestidade’. Ele fez uma pausa e me disse: ‘É isso que eu quero, lealdade honesta’. Eu parei e disse: ‘Você terá isso de mim'”, relatou Comey.
O ex-diretor ponderou que o termo “lealdade honesta” pode ser entendido de várias maneiras. “Mas eu decidi que não seria produtivo continuar naquela conversa. O termo –lealdade honesta– me ajudou a encerrar uma conversa muito estranha e minhas explicações já tinham deixado claro o que ele deveria esperar de mim.”
Comey disse que conversou com Trump nove vezes sozinho –três em encontros e seis por telefone. Em todas elas, disse, escreveu um relato ao final, em um memorando, por sentir que deveria documentar as conversas, por conta de seu conteúdo.
Também afirmou ter pedido ao secretário de Justiça, Jeff Sessions, que não conversasse mais a sós com Trump, por ser inapropriado considerando o caráter independente do posto de diretor do FBI. Sessions nunca o respondeu.
Na véspera do depoimento de Comey, Trump anunciou sua escolha para o posto: Christopher Wray, que liderou, durante o governo de George W. Bush, a divisão criminal do Departamento de Justiça, e foi advogado pessoal do governador de Nova Jersey, o republicano Chris Christie, no escândalo conhecido como “Bridgegate”.
BARES E FILA
A expectativa para o depoimento já era grande desde que sua data foi anunciada, na semana passada. Cerca de duas horas antes do início da sessão, uma longa fila se formava do lado de fora do Comitê de Inteligência.
Durante a semana, enquanto a rede CNN mostrava uma contagem regressiva de dias e horas para o depoimento, pelo menos seis bares da cidade anunciaram que abririam as portas pela manhã para transmitir a sessão ao vivo.
Muitos prepararam ofertas ou drinks especiais para a ocasião. O Union Pub, por exemplo, disse que daria uma rodada de drinks a todos os clientes a cada tuíte de Trump sobre Comey durante o depoimento. Não teve que pagar nenhum, já que Trump não respondeu ao ex-diretor pelas redes sociais.
O Duffy’s Irish Pub, na badalada rua U, criou o coquetel “covfefe” para o “show de James Comey”. O bar Commissary também fez o seu drink “conspiração e covfefe” –cerveja com uma dose de vodka russa.
A brincadeira é com um tuíte recente de Trump, no qual ele escreveu a frase indecifrável: “Apesar da constante imprensa negativa covfefe”. A mensagem foi apagada, mas o estrago nas redes já estava feito. O presidente tentou reverter a situação depois, fazendo piada com o próprio erro.
Folha