Diálogo entre Coreias é uma caixinha de surpresas
Muitos ao redor do mundo acompanham com alívio a retomada de conversações entre as duas Coreias.
Quando o assunto é o perigo que um conflito na Península representa para a Ásia e para o mundo, emerge a sensação de que o ano não poderia ter começado melhor.
Isso é tanto mais forte em se considerando que 2017 viu a capacidade de dissuasão norte-coreana aumentar em escala e alcance.
Especialistas em segurança coletiva passaram a reconhecer que os artefatos nucleares à disposição do regime de Kim Jong-un estão mais potentes.
Além disso, apenas no ano passado a Coreia do Norte realizou três testes de mísseis balísticos intercontinentais, ademais de experimentos com foguetes de médio alcance, passíveis de atingir o Japão.
Tudo isso vem sempre acompanhado de retórica beligerante não apenas de Seul e Pyongyang, mas também de Washington e Tóquio.
Coreia do Sul e Japão, imediatamente no alcance da envergadura nuclear norte-coreana, encontram-se com nervos ainda mais à flor da pele dada a postura de questionar alianças estratégicas na região adotada pela campanha de Trump à Casa Branca.
Em diversos momentos da corrida presidencial, Trump indicou que seus aliados no Pacífico teriam de ajudar a pagar pelo escudo protetor norte-americano.
Seul e Tóquio não serenaram após 20 de janeiro último. Desde então, a política externa e de defesa de Trump é, num eufemismo elogioso, errática.
O inesperado recurso ao diálogo aparentemente se relaciona ao desejo de que atletas norte-coreanos participem da Olimpíada de Inverno de Pyeongchang, na Coreia do Sul mês que vem.
Delegações de ambos os países também teriam tratado, no encontro desta semana, de questões como o reencontro de famílias divididas pela Guerra de 1950-53.
O comunicado oficial das diferentes potencias que mantêm uma ficha no jogo geoestratégico da península Coreana foi de saudação às conversações. EUA, China, Rússia e Japão classificam a retomada do diálogo como positiva.
No entanto, sob o manto razoavelmente uniforme de alívio, operam os interesses específicos de cada país. Nesse quadro, um estágio de maior ou menor tensão pode representar recompensas pontuais.
Para a Coreia do Norte, ainda que retorne uma interlocução regular com Seul, seu grande interesse é em negociar em pé de igualdade com os EUA, e assim ser reconhecida como potência nuclear primeiro por Washington e depois pela comunidade internacional. Para tanto, uma ampla distensão na Península, apesar das sanções internacionais em vigor, não é de seu interesse prioritário.
Para a Rússia, o esfriamento do potencial de conflito diminui seu peso específico como “corretora da paz” em nível plurilateral ou mediante seu assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Para o Japão, o vaivém entre cooperação e conflito envolvendo as Coreias fora de uma moldura negociadora de caráter plurilateral relega Tóquio à posição de passivo e vulnerável espectador.
Para a China, a ausência de um conflito disruptivo em sua vizinhança geopolítica atende, num primeiro olhar, a seus interesses imediatos. Ademais, um cenário global em que a China pode concentrar-se em suas grandes metas econômicas sem “distrações político-militares” também parece ser do agrado de Pequim.
Contudo, numa brecha viabilizada pela própria imperícia de Trump, os chineses passaram a entender que se assumissem maior papel pela estabilidade das Coreias, Washington abriria mão de lançar uma “guerra comercial” contra a China.
Dessa forma, para Pequim, uma plena distensão entre as Coreias deixa de ser do interesse de curto prazo. Sem precisar da China para coibir o regime de Kim, os EUA poderiam interpor mais obstáculos à economia chinesa e, portanto, deixar de dar tratamento geopolítico a temas comerciais.
E, para Washington, um avanço nas conversas diretas entre as duas Coreias pode reforçar a crescente percepção mundo afora de que os EUA de Trump são uma potência “dispensável”.
Num exame mais aprofundado, vê-se que da caixinha coreana podem sair inúmeras surpresas. No jogo frio das relações internacionais, por vezes a cooperação traz à tona tantas sensibilidades quanto o conflito.
FOLHA
OPIPOCO