“É, no mínimo, lamentável”, diz Fachin sobre Bolsonaro em atos contra o STF
Nos últimos meses, o ministro Edson Fachin tomou para si o papel de defesa do STF (Supremo Tribunal Federal) — que tem sido cada vez mais atacado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus apoiadores.
De sua residência em Curitiba, em entrevista à coluna por videoconferência, Fachin diz que está preocupado com o ressurgimento do populismo no Brasil. Acredita que o momento é “difícil e grave”. E considera “lamentável” a participação de Bolsonaro em manifestações que pedem o fechamento do Supremo.
O ministro vai presidir o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) por seis meses no ano que vem. Em agosto, passará o bastão a Alexandre de Moraes, que comandará as eleições.
Para Fachin, é um atentado contra a democracia a fala de Bolsonaro de que não aceitará qualquer resultado nas urnas que não seja sua vitória. Mas o ministro não reserva apenas críticas ao mandatário. Ele concorda com a proposta de Bolsonaro de restringir à Justiça o poder de remover conteúdos e usuários de redes sociais.
UOL – Para o senhor, o populismo de governantes é uma ameaça à democracia?
Fachin – Vejo com preocupação o ressurgimento de populismos de vários matizes ideológicos e, nesta medida, a democracia precisará melhorar sua qualidade de realização, para que ela não seja capturada por essas mentes populistas, que não raro tendem ao autoritarismo.
O populista é aquele que reside na antessala de um regime autoritário, seja de um marco ideológico, seja de outro. É por isso que o populismo, em regra, é nefasto, especialmente quando associado com práticas autoritárias, cerceamento da liberdade de imprensa, cerceamento de direitos fundamentais, propagação da violência e tantas outras circunstâncias que caracterizam os líderes populistas.
O senhor vê no Brasil a ameaça do populismo?
Vejo.
Creio que o Brasil vive uma hora difícil e grave. Nós teremos um bom teste para as instituições democráticas nos próximos meses e nos próximos tempos.
Eu confio que as instituições terão resiliência, capacidade de resistência, para que elas se mantenham acima desses arroubos da conjuntura, para mostrar que a estrutura das instituições, embora oscile na conjuntura, ela se mantém.
Como a democracia pode resistir a esse tipo de ameaça?
Vamos ao exemplo do Capitólio. Aconteceu um estímulo populista e autoritário de invasão de outro Poder. Mas o Poder reagiu quase à unanimidade. Independentemente do marco ideológico, a espinha dorsal da democracia falou por praticamente todos os parlamentares, reputando aquele ato inadmissível. O Parlamento não se curvou. Segundo fato importante: as Forças armadas foram imediatamente para lá, para proteger o Parlamento, evidenciando, portanto, que as Forças Armadas não protegem governos, elas protegem as instituições e o Estado. E foi o que aconteceu nos Estados Unidos. Terceira circunstância: houve uma condenação quase unânime dos inúmeros países que se manifestaram, condenação inclusive de arcos ideológicos muito distintos. A comunidade internacional não silenciou.
Esses três elementos serão testados no Brasil nos tempos próximos.
O presidente Jair Bolsonaro costuma participar de manifestações com cartazes pedindo o fechamento do STF. Essa atitude do presidente o incomoda?
O chefe do Poder Executivo opera no campo da política. No mínimo, é lamentável que o chefe de um Poder, por ação ou por omissão, possa aquiescer com proclamações que são inconstitucionais. É, no mínimo, lamentável.
Agora, são gestos políticos que se esperam que a própria política aprecie. Isso significa que a própria sociedade, quando convocada a se manifestar, a participar de processos eleitorais, responda a isso, para consolidar a democracia. Não basta que nós da Justiça Eleitoral falemos da democracia. É importante que o Parlamento, de modo uníssono, defenda a democracia. Mas é importante que tenhamos uma sociedade democrática, plural, aberta. É essa sociedade que está sendo chamada nos próximos tempos a dizer o que pensa nas urnas e nas eleições.
O presidente Bolsonaro tem dito que não vai aceitar qualquer resultado das urnas em 2022 que não seja favorável a ele. Ele diz que, se não ganhar, isso seria indício de fraude. O senhor considera que essa ideia compromete a democracia?
Uma das definições importantes da democracia é a normalização da incerteza. Significa obedecer as regras do jogo. Ninguém pode ter certeza se vai ganhar ou perder uma eleição. Se alguém quiser certeza prévia, isso significa atentar contra as regras do jogo democrático. Precisamos preservar o sistema eleitoral. Afirmações segundo as quais, por antecipação, há negativa de aceitar resultado adverso atentam contra o sistema eleitoral.
Para o senhor, a polarização pode acirrar a crise política no país?
A competição honesta, o respeito às regras do jogo e a aceitação do resultado são fundamentais à democracia e é isso que o TSE espera em 2022. Antagonismo ideológico e luta sadia pela conquista do poder político são inerentes ao jogo democrático. Dissensos e debates públicos são essenciais para a democracia. Precisamos sair da crise sem sair da democracia.
Qual a opinião do senhor sobre o voto impresso, defendido pelo presidente Bolsonaro?
O voto eletrônico não decorre de uma veleidade tecnológica, nem foi desenvolvido a esmo. Pelo contrário, surge para suprir uma necessidade histórica, isto é, para dar fim a uma série de fraudes concretas que debilitavam diversos aspectos dos pleitos, da votação à totalização.
Em suma, a proposta em discussão carrega consigo uma gama substancial de desvantagens, sem oferecer, em contrapartida, qualquer ganho real, tendo em vista que o sistema eletrônico é plenamente confiável, além de auditável em cada um de seus aspectos.
O presidente Bolsonaro planeja baixar um decreto para proibir remoção de conteúdo das redes sociais. Para o senhor, os provedores podem ter autonomia excluir postagens ou usuários, como forma de combater as fake news?
A grande questão que se coloca é a impossibilidade de se permitir qualquer tipo de censura ou de restrição à liberdade de pensamento, de expressão, de comunicação. Esta deve ser a premissa, a de que cada um tem um direito que é inatingível, o direito de se expressar, de se manifestar. Isso não significa que as manifestações não estão submetidas ao escrutínio. Se alguém deliberadamente dissemina uma informação falsa, aí nasce um juízo de ponderação entre o exercício da liberdade e o dano ou risco potencial de dano.
O direito do exercício da liberdade não pode atentar contra aquilo que a liberdade protege. Aqui nasce o debate: qual é o limite desse exercício e qual é o limite desse filtro? Porque o filtro também não pode se converter em censura. Em havendo dúvida, a decisão é sempre a favor da liberdade. Logo, a remoção de conteúdo deve ser exceção e, preferentemente, somente por ordem judicial. Porque haverá o contraditório e a ampla defesa.
Em caso excepcional, os provedores podem ter autonomia para remover conteúdo?
Nós não podemos conceder o poder absoluto a ninguém. Na dúvida, melhor deixar o conteúdo e preservar a liberdade. A regra que eu entendo adequada é autorização judicial prévia, para que se evite o exercício arbitrário de razões que podem ser próprias.
Hoje, os provedores estão agindo em prol de interesses e bens jurídicos que merecem tutela: a veracidade das informações, a saúde da população, as orientações sanitárias, no caso da pandemia. Agora, nós não podemos deixar de considerar que a ferramenta que se dá num sentido pode tomar outro caminho. Portanto, é preciso temperar o poder dessa filtragem. E nada melhor do que passar pelo crivo do Poder Judiciário.
A decisão do senhor de anular as condenações impostas ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de certa forma, enfraquece a Lava Jato. Qual a avaliação que o senhor faz da atuação do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores de Curitiba?
Reitero o que tenho afirmado. O enfrentamento à corrupção deve ser democrático e efetivo, sem espaços para atalhos, atitudes heterodoxas ou seletividades.
A atuação dos órgãos estatais deve estar pautada na Constituição da República, devendo os acertos serem chancelados e falhas, corrigidas. Entendo, assim, que não devem ser feitas avaliações individuais. O sistema de justiça — Ministério Público, magistratura, Polícia Federal, Receita Federal — sempre que chamado, tem atuado com autonomia, competência, agilidade, buscado a responsabilização dos envolvidos com as ilicitudes e a recuperação de valores públicos desviados, com resultados bastante expressivos.
O senhor avalia que houve mais erros ou acertos na Lava Jato?
A Operação Lava Jato é reconhecida muito mais pelos seus méritos e ganhos institucionais decorrentes dos importantes avanços no combate à corrupção do que pelos eventuais erros e excessos.
As falhas, sempre que verificadas, devem ser corrigidas, percorrendo o caminho da legalidade, da ampla defesa e do contraditório, como aliás tem sido feito pelo STF sobre os temas relacionados às investigações penais. O desafio atual é evitar que o retrocesso pontual na política de combate à corrupção se transforme em retrocesso institucional.
Para o senhor, qual foi o papel da Lava Jato no combate à corrupção no país?
Retirou o véu que encobria agentes públicos de alto escalão, agente políticos, grandes empresas e empresários que há décadas se apropriavam de bens e valores públicos para satisfazem seus interesses escusos. Vejo a operação Lava Jato com números impressionantes de denúncias, condenações e colaborações premiadas.
Apenas no STF, foram homologadas cerca de 120 colaborações premiadas e arrecadado mais de R$ 1,3 bilhão, sendo que há valores mais expressivos recuperados nos juízos de primeiro grau. O que vimos nos últimos anos por meio do trabalho da Operação Lava Jato é, portanto, um longo amadurecer de instituições de controle que, graças à sua autonomia e ao trabalho de servidores dedicados, deram efetividade na apuração dos crimes e alcançaram expressivo sucesso na recuperação de assustadoras quantias desviadas.