Chile tenta acelerar busca de bebês sequestrados e vendidos na ditadura
Na fase final do governo de Sebastián Piñera, e em meio ao anúncio do gabinete ministerial do futuro presidente Gabriel Boric, nos últimos dias o Chile avançou mais um passo na revisão de crimes cometidos pelos militares durante a ditadura –e em direção à reparação histórica a quem sofreu com eles.
Na semana passada, o presidente que deixa o cargo no próximo dia 11 de março lançou um projeto que prevê acelerar a busca por bebês sequestrados no regime de Augusto Pinochet (1973-1990). Em resumo, a iniciativa fará aportes de dinheiro e a compra de kits de DNA para que organizações que se dedicam a essa procura realizem seu trabalho.
O ministro da Justiça, Hernán Larraín, afirmou que, dessa forma, o governo chileno vai “colaborar com as pessoas cujos filhos foram adotados de modo irregular ou foram registrados de maneira falsa, tendo sido tirados de mães e pais, em atos que vão contra a dignidade humana”. Apesar das intenções, o programa foi alvo de críticas na sociedade e mesmo entre as associações possivelmente beneficiadas.
Primeiro, devido ao atraso: o assunto esteve entre as promessas de campanha de Piñera em 2017, mas só agora entrou em vigor. Depois –e principalmente– porque, segundo esses grupos, o Estado se exime de qualquer responsabilidade pelos delitos pela forma como a iniciativa está desenhada.
“Trata-se de crimes cometidos pelo Estado, então pedimos que a partir do Estado se estabeleça uma Comissão Nacional de Verdade, Justiça e Reparação” que possa centralizar as buscas, afirmou em comunicado a Hijos y Madres del Silencio. A organização que iniciou seu trabalho de modo organizado em 2014 se dedica a identificar menores sequestrados dos pais nos anos 1970, a exemplo do que fazem na Argentina as Avós da Praça de Maio.
Quando se fala em sequestros de bebês no período das ditaduras do Cone Sul, é esse grupo portenho o exemplo mais conhecido. Desde 1978, as avós encontraram 138 pessoas e devolveram suas identidades originais –acredita-se que a repressão argentina tenha subtraído das mães mais de 500 crianças, entregando-as para serem criadas por pessoas próximas aos militares ou por eles mesmos.
No país vizinho, a Hijos y Madres del Silencio também busca pelo menos 579 bebês que foram retirados de seus pais principalmente nos anos 1970, no início da ditadura Pinochet. Ainda que a prática atroz tivesse o mesmo fim, suas motivações eram, em alguma escala, distintas.
Na Argentina, o sequestro de crianças estava relacionado em geral à atividade política da família. Os bebês roubados eram em geral filhos de militantes de esquerda, de Montoneros (uma guerrilha urbana peronista) e demais opositores do regime militar (1976-1983). Mortos em centros de detenção ou jogados no rio da Prata nos chamados “voos da morte”, essas pessoas não conheciam o destino de seus filhos.
Já no Chile, uma investigação que vem sendo tocada pelo juiz Mario Carroza desde 2018 tem mostrado que a motivação para esses delitos era outra. Sob o pretexto de atuar num plano do regime para erradicar a pobreza do país, religiosos, assistentes sociais, juízes, médicos e enfermeiras atuavam, pagos pelo Estado, como intermediários entre famílias humildes –muitas delas de indígenas mapuches– e estrangeiros interessados em ter filhos.
As adoções eram feitas via pagamento ao Estado chileno.
Segundo os relatos colhidos nas investigações, era comum que se dissesse aos pais biológicos que o bebê havia morrido logo após o parto, enquanto que nas certidões de adoção faziam constar uma declaração falsa de que a criança havia sido entregue voluntariamente. Aos pais adotivos, afirmava-se que se tratav de filhos de famílias muito humildes, que diziam não ter condições para criá-los, ou de prostitutas que não queriam a responsabilidade, por não saber quem era o pai e não contar com sua ajuda.
“Era um negócio mesmo, um negócio muito lucrativo e baseado em um crime de lesa-humanidade”, diz à Folha Marisol Rodríguez, da Hijos y Madres del Silencio. A associação já promoveu 230 encontros e conta ainda 237 filhos que buscam os pais biológicos e 357 famílias à procura de seus filhos. Entre os países em que mais se encontraram chilenos entregues de modo ilegal estão a Suécia, os EUA, a Argentina e o Uruguai.
Para Carroza, ainda que estejam sob investigação 579 adoções ilegais por casais estrangeiros nos anos 1970, esse número pode ser muito maior, entre 700 e até 20 mil.
A falta de amparo jurídico às famílias e aos sequestrados foi outro problema apontado no projeto do governo Piñera por críticos ao texto. O deputado Boris Barrera, do Partido Comunista, foi um dos que fizeram esse apontamento, tendo como base o suporte que envolve a associação das avós argentinas.
Ele afirma que o programa chileno não abarca aspectos como equipes de acompanhamento psicológico, de advogados e técnicos que possam auxiliar desde a obtenção de novos documentos até a relação com as famílias biológicas e, principalmente adotivas –já que muitas delas são passíveis de processo legal, dependendo do que sabiam sobre o processo.
O parlamentar também fez eco ao fato de o programa delegar a ONGs uma responsabilidade que seria do Estado chileno.
Outras críticas ao plano envolvem os kits de DNA que estão sendo comprados –que não corresponderiam ao padrão necessário para esse tipo de busca– e à ausência no texto de um compromisso do governo em criar um banco de dados genéticos, nos moldes do que é usado na Argentina pelas Avós da Praça de Maio. O recurso, referência internacional em casos de pessoas desaparecidas, guardaria as informações sob proteção da identidade dos que se comprometem a deixar seu material ali para a busca de parentes.
“Descobrir-se já quando adulto ser uma pessoa tirada tão jovem de sua família é algo traumático. Um projeto de governo deve ser mais abrangente no que diz respeito ao que pode fazer por esses cidadãos, que são chilenos”, diz Barrera.
FOLHAPRESS