Mundo

Sistemas criados para conter Covid na China ampliam controle do regime sobre cidadãos

164376954961f9eecd44dea_1643769549_3x2_lg Sistemas criados para conter Covid na China ampliam controle do regime sobre cidadãosA polícia ordenou ao advogado de direitos humanos Xie Yang que não viajasse a Xangai visitar a mãe de um dissidente. Ele foi ao aeroporto assim mesmo.

O sinal de seu aplicativo de saúde —passe digital indicando possível exposição ao coronavírus— estava verde, não havia casos de Covid em sua cidade, Changsha, e Xie não saía havia semanas. Então o aplicativo ficou vermelho, indicando que ele seria uma pessoa de alto risco. Os seguranças do aeroporto tentaram colocá-lo de quarentena, mas ele resistiu.

Xie acusou as autoridades de mexer em seu código de saúde para impedi-lo de viajar. “O Partido Comunista Chinês encontrou a melhor solução para controlar a população”, disse Xie em dezembro. Ele, que é crítico do governo, foi detido em janeiro, acusado de incitar a subversão e criar problemas.

A pandemia entregou de bandeja ao líder Xi Jinping um argumento poderoso para aprofundar a ingerência do partido na vida de 1,4 bilhão de cidadãos, pondo em prática sua visão do país como modelo de ordem segura, em contraste com o “caos do Ocidente”.

Nos dois anos passados desde que as autoridades isolaram a cidade de Wuhan no primeiro lockdown da pandemia, o governo chinês vem aprimorando seus poderes de rastrear pessoas, com a ajuda de tecnologia, exércitos de agentes comunitários e amplo apoio público.

Animados com o êxito em combater a Covid, as autoridades chinesas estão usando sua capacidade aprimorada de vigilância para combater também a criminalidade, a poluição e forças políticas ditas hostis. Isso tudo equivale a uma poderosa ferramenta tecnoautoritária nas mãos de Xi, no momento em que ele intensifica campanhas contra a corrupção e a dissensão.

A base dos controles é o código de saúde. Em cooperação com empresas de tecnologia, autoridades locais geram o perfil do usuário com base em seu local de residência, histórico de deslocamentos, resultados de testes e outros dados. A cor do código determina se o usuário está autorizado a entrar em edifícios ou espaços públicos, e o uso do app é implementado por legiões de funcionários que têm o poder de colocar pessoas em quarentena ou limitar seus deslocamentos.

Os controles são fundamentais para a China alcançar sua meta de erradicar o vírus completamente em seu território —uma estratégia na qual o partido apostou sua credibilidade, não obstante a emergência de variantes altamente contagiosas. Depois dos erros iniciais que permitiram a propagação do Sars-CoV-2, a política “Covid zero” vem ajudando a manter o número de casos baixos na China, enquanto as mortes continuam a crescer nos EUA e em outras regiões.

Mas as autoridades chinesas têm agido com severidade, às vezes até isolando crianças de seus pais. Representantes municipais não responderam a perguntas sobre a denúncia de Xie. Embora seja difícil saber o que ocorre em casos individuais, o próprio regime já assinalou que quer utilizar essas tecnologias para outros fins.

O monitoramento de saúde agora ajuda a localizar foragidos: alguns foram rastreados por seu código de saúde, e outros, que evitaram usar o app, enfrentaram tantas dificuldades no cotidiano que acabaram se rendendo.

Apesar de toda a sofisticação aparente, o sistema de vigilância ainda requer uso intensivo de mão de obra. E, embora de modo geral o público tenha apoiado as ingerências de Pequim na pandemia, as preocupações com a privacidade vêm aumentando.

‘NASCE UM CÍRCULO VICIOSO’

Uma concentração de casos de Covid na província de Zhejiang, no leste da China, no fim do ano passado começou com um funeral. Quando um dos presentes, um profissional de saúde, recebeu diagnóstico positivo num teste de rotina, cem rastreadores entraram em ação.

Em questão de horas as autoridades já haviam alertado colegas em Hangzhou, a 70 km de distância, da presença de um potencial portador do coronavírus na cidade. Funcionários do governo o localizaram e testaram —e ele também recebeu diagnóstico positivo.

Usando dados digitais dos apps de saúde, equipes mapearam uma rede de pessoas a serem testadas, baseadas nos locais por onde o homem havia passado: um restaurante, um salão de majongue, salões de jogos de cartas. Em duas semanas conseguiram interromper a corrente de infecções em Hangzhou, onde se descobriu que 29 pessoas haviam se contaminado.

A capacidade de rastrear esses surtos depende em grande medida do código de saúde. Antes da pandemia a China já tinha uma capacidade enorme de rastrear pessoas com os dados de localização de celulares, mas hoje esse monitoramento é muito mais amplo.

Nos últimos meses, as autoridades de várias cidades ampliaram a definição de um contato estreito para incluir pessoas cujo sinal de celular foi detectado a até 800 metros de uma pessoa infectada.

Xi elogiou o centro dito “cérebro de Huangzhou”, descrevendo-o como um modelo de como a China pode usar a tecnologia para combater problemas sociais. A entidade centraliza dados sobre tráfego, atividade econômica, uso de hospitais e queixas públicas.

Desde 2019, a cidade também vem usando câmeras nas ruas para checar se os cidadãos estão de máscara. Um distrito monitorou o consumo elétrico residencial para verificar se os moradores estavam obedecendo as ordens de quarentena. A prefeitura de Luoyang instalou sensores nas portas de quem estava confinado para notificar autoridades se elas fossem abertas.

Chen Yun, acadêmica da Universidade Fudan, em Xangai, escreveu que com o enfoque concentrado sobre tecnologia e vigilância as autoridades podem estar deixando de lado outras maneiras de proteger a vida das pessoas —como ampliar a participação popular em programas públicos de saúde. O risco, segundo ela, é que surja “um círculo vicioso: as pessoas vão ficando cada vez mais marginalizadas, enquanto aumenta a penetração da tecnologia e do poder em todo lugar”.

‘DE PLANTÃO 24 HORAS POR DIA’

Há mais de uma década o Partido Comunista vem reforçando seus exércitos de agentes de base que fazem a vigilância de porta em porta. O novo aparato digital turbinou essa forma de controle. De acordo com a mídia estatal, o país mobilizou 4,5 milhões de agentes para combater a pandemia —um a cada 250 adultos.

Nos tempos normais, os deveres desses trabalhadores incluíam arrancar mato, mediar disputas e ficar de olho em potenciais agitadores, mas a missão se multiplicou com a pandemia.

Os agentes passaram a ter que vigiar conjuntos habitacionais e registrar a identidade de todos que entravam neles; telefonar para verificar se os moradores haviam sido testados e vacinados; ajudar pessoas em lockdown a colocar seu lixo para fora. E eles receberam ferramentas novas e poderosas.

O governo central instruiu a polícia e empresas de internet e telefonia a compartilhar com os agentes comunitários o histórico de deslocamentos dos moradores, para que eles pudessem decidir se alguém era considerado de alto risco.

Num condado na província de Sichuan, as fileiras de agentes de base triplicaram ao longo da pandemia, chegando a mais de 300, segundo Pan Xiyu, 26, uma das novas contratadas. Responsável por 2.000 moradores, ela diz que passa boa parte do tempo distribuindo folhetos e montando alto-falantes para explicar novas medidas e incentivar a vacinação. “Tenho que ficar de plantão 24 horas por dia.”

E a pressão para sufocar surtos de Covid pode causar excesso de zelo, levando autoridades a priorizar a adesão às normas, custe o que custar.

Durante o lockdown em Xi’an, hospitais recusaram atendimento a uma grávida de oito meses porque o resultado do teste de Covid dela perdera a validade horas antes. Ela perdeu o bebê, num incidente que provocou fúria pública generalizada. Mas algumas pessoas atribuíram o episódio à pressão imposta a funcionários de baixo nível para acabar com as infecções.

“Na visão deles, é sempre preferível ir longe demais do que optar pela condescendência, é a pressão criada pelo ambiente atual”, diz Li Naitang, agente aposentada de Xi’an.

Mesmo assim, os defensores das medidas rígidas consideram que os resultados são inegáveis. A China registrou apenas 3,3 mortes por coronavírus por milhão de cidadãos, enquanto nos EUA são cerca de 2.600. Após o registro de zero novo caso, Xi’an suspendeu o lockdown na semana passada.

‘VOCÊ NUNCA FICARÁ PERDIDO’

O êxito que o regime vem tendo em limitar infecções garantiu à estratégia algo que não se vê em muitos outros países: apoio popular amplo. Pan diz que o trabalho dela está mais fácil agora do que no início da pandemia, quando as pessoas muitas vezes discutiam quando lhes era dito que tinham que usar máscara ou escanear seu código de saúde.

As autoridades defendem abertamente a utilização das medidas de controle do vírus para finalidades não ligadas à pandemia. Na região de Guangxi, no sul, um juiz notou que a contagem dos moradores locais feita pelos agentes de base “era mais completa que o censo” e teve a ideia de mandar esses profissionais localizarem pessoas que não conseguiam ser encontradas; 18 intimações foram entregues.

Prefeituras em toda a China asseguram a seus residentes que os dados constantes de seu código de saúde não serão usados para outros fins. O governo central também anunciou normas prometendo a privacidade de dados. Mas muitos chineses supõem que as autoridades podem acessar qualquer informação que quiserem, sejam quais forem as normas.

Zan Aizong, ex-jornalista residente em Hangzhou, diz que com a ampliação da vigilância ficará ainda mais fácil para as autoridades reprimirem as atividades de dissidentes. Ele próprio se recusa a usar o código de saúde, mas isso significa que se deslocar é complicado.

“[Em postos de controle] não posso dizer a verdade —que estou resistindo ao código de saúde porque sou contra a vigilância”, afirma. “Se eu mencionasse resistência, eles achariam um absurdo.”

Tradução de Clara Allain

Etiquetas

O Pipoco

Jornalismo sério com credibilidade. A Verdade nunca anda sozinha. Apresentaremos fatos num jornalismo investigativo e independente. Com o único compromisso de mostrar para Você, Cidadão, o que acontece nos bastidores da Política; da Administração e Outros.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo
Fechar