O que leva uma grife de luxo a vender tênis rasgado e sujo por R$ 10 mil?
Na tarde de ontem, a Balenciaga disponibilizou a pré-venda para os seus novos tênis. Com preços de até US$ 1,8 mil, cerca de R$ 10 mil na cotação atual, as peças foram nomeadas Paris Sneakers.
O lançamento dos itens limitados rapidamente virou notícia e gerou muitas reações nas redes sociais — embora não necessariamente nessa ordem. “Que legal, a Globo fazendo parceria com a Balenciaga. Lançaram um tênis baseado no lixão da Mãe Lucinda [personagem da novela “Avenida Brasil”], brincou um @ ao escrever o tuíte que mostrava os calçados com a aparência suja e desgastada.
As fotos que protagonizavam as publicações, em todas redes sociais, eram em sua maioria as utilizadas para a divulgação e propaganda dos tênis. Já os que foram até o site oficial da Balenciaga encontraram na descrição do produto, mesmo que mais limpo nessas imagens, palavras fieis às suas características: “Algodão e borracha totalmente destruídos”. Além de “rasgos em todo o tecido”.
“Deve ser usado por toda vida”, justifica a marca em comunicado.
Essa estética “destroyed” não é exatamente nova. Além da própria Balenciaga em roupas de temporadas anteriores, a Comme des Garçons apresentou, em 1982, a coleção Destroy sob o comando de Rei Kawakubo, considerada uma “Hiroshima chique” pela imprensa francesa, ao levar vestidos com furos para as passarelas.
Agora, se você se questiona “o que leva uma grife de luxo a vender um tênis ‘destruído’ por R$ 10 mil?”, a resposta, neste caso, tem um nome: Demna Gvsalia.
Demna é o diretor criativo da Balenciaga desde 2015, grife francesa fundada pelo espanhol Cristóbal Balenciaga, em 1917. Há mais de 100 anos, a inovação sempre foi um dos principais pilares da etiqueta. As raízes da cultura na Espanha, como o flamenco, e pintores locais, como Diego Velázquez e Francisco Zurbarán, estavam entre as inspirações do alfaiate Cristóbal para criar as coleções — surpreendentes aos olhos já acostumados com um padrão.
Exatos 50 anos após a morte do fundador, o novo nome por trás da grife, parte do Grupo Gucci, é um refugiado da Geórgia. O “esquisito e solitário”, como o próprio Demna já se autodenominou em entrevistas, faz da Balenciaga uma das marcas mais poderosas do mundo. Em 2021, à prova disso, a etiqueta figurou no 1º lugar do relatório da Lyst Index como a “mais quente do ano”.
O segredo para o sucesso estrondoso? A comunicação, principalmente com as gerações mais jovens.
Em matéria publicada em dezembro de 2021 por Nossa, sobre a importância do “viralizar” hoje na moda, o professor e historiador de moda João Braga pontuou: “É preciso dialogar com o jovem. Mesmo que ele não tenha condição de comprar os artigos luxuosos, eles ainda podem adquirir outros itens que vão dar retorno financeiro. A estratégia não é nova. Eles vão convencer essa pessoa e, posteriormente, quando ela estiver no mercado de trabalho, vai continuar fiel à casa”.
Nesse passo se constrói atualmente a relação entre a Balenciaga e a Geração Z.
Ao dialogar com eles — e sobretudo provocá-los, as criações do diretor criativo constantemente se tornam virais, populares e itens de desejo. É mais sobre fazer parte de um grupo, que se identifica com o “absurdo”, do que vestir uma roupa.
“Quando entrei na Balenciaga, queria oferecer um guarda-roupa de moda que falasse com as gerações atuais”, comentou Demna Gvsalia em entrevista à revista francesa “Numéro”.
À jornalista Delphine Roche, nesse mesmo artigo, o estilista endossou a memória com as seguintes palavras: “Não quero provar nada para ninguém e não peço reconhecimento de ninguém. Se eu me senti mal por tanto tempo, é porque quando pensamos fora da caixa, criamos desconforto entre os espectadores.”
Tal desconforto é pertinente hoje na era das plataformas digitais, onde opiniões se cruzam e causam ruído com constância. No meio desse caminho é possível construir autenticidade, um grande segredo para bombar nas redes sociais. A ausência do medo sobre o que as pessoas têm a dizer. Algo já mencionado pelo designer.
“Me livrei dos medos. Criativamente, isso realmente me ajudou — parei de ter medo do que as pessoas vão pensar e dizer. Tornei-me mais fiel a mim mesmo”, disse ele. Dessa vez, em entrevista à “The Cut”, em 2020.
Fundador da também extravagante Vetements, hoje sob o comando do seu irmão, Guram Gvsalia, o diretor criativo georgiano produz não só moda, mas cultura.
Em vez de publicar seu próprio conteúdo digital para os 13 milhões de seguidores no Instagram, a marca dá essa oportunidade aos seus clientes. Ou melhor, usuários. Enquanto isso, o feed do perfil reporta “ainda não há nenhuma publicação”. Estratégia similar a adotada recentemente pela Bottega Veneta, que apagou a conta na mesma rede social.
Desde o lançamento de tênis, como o Paris Sneaker, até os red carpets de grandes eventos internacionais, o nome Balenciaga gera engajamento. Em 2021, por exemplo, Kim Kardashian “quebrou a internet”, como de costume, ao surgir com um look que tampava todo o seu corpo e rosto durante o Met Gala em Nova York, nos EUA. Demna inclusive entrou ao lado de Kim e chegou a ser confundido com o ex-marido da empresária, Kanye West — um dos grandes colaboradores da grife francesa.
Não teve quem não falasse sobre o visual da Kardashian. Mesmo que completamente coberta, todos sabiam quem estava por trás da roupa.
“Você não podia ver o rosto de Kim, mas sabia instantaneamente quem era ela, porque é assim que a celebridade funciona hoje em dia”, disse Gvasalia à”W Magazine”. “Seu corpo é sua marca, e você não precisa ter nenhuma decoração. Teria sido chato para mim colocar algum tipo de lustre na cabeça dela.”
E “chato” dificilmente será um adjetivo para qualquer coleção da Balenciaga. No ano passado, ao retornar para a Alta-Costura, a coleção da grife trazia alfaiatarias largas, casacos que cobriam todo o corpo ao “abraçar o conforto” e silhuetas extravagantes.
“Sinto que meu desafio e responsabilidade como designer hoje é questionar o que é beleza”, ressaltou Demna em entrevista à revista “Interview” ao falar sobre a coleção. “Sou um refugiado. Precisei buscar beleza em tudo”.
O estilista menciona ainda referências a Cristóbal Balenciaga: “Enquanto quando todo mundo estava fazendo silhuetas ajustadas, ele fez o que eles chamavam de ‘bolsa de batata’. A coisa mais mínima. Ele foi o pai do minimalismo em alguns aspectos.”
As pessoas ridicularizaram e disseram que era feio e [quando li sobre isso], de repente, me senti tão bem. Porque percebi que quando você quer fazer algo assim, sempre terá que sofrer por não ser compreendido imediatamente. Eu também passei por isso, e ganhei esperança”.
Ser entendido logo de cara, ao que tudo indica, não é uma ambição para Demna Gvsalia com a Balenciaga. Pelo contrário, a intenção parece ser questionar o valor do luxo e o que ele aparenta ser. O que estamos comprando e os que nos está sendo vendido?
UOL