Maconha medicinal: uso de CBD cresce para tratar depressão, mas esbarra em falta de evidências
Mesmo sem evidências científicas robustas para sustentar a indicação, pacientes com depressão e médicos psiquiatras têm apostado no CBD (canabidiol), um dos principais componentes da maconha medicinal, como um coadjuvante no tratamento do transtorno. A substância é vista como uma saída especialmente para quem já esgotou todas as outras opções terapêuticas.
A profissional de marketing Joana*, 28, teve sua primeira crise depressiva aos 24 anos. Para o tratamento, a gaúcha alternou o uso de ao menos cinco medicamentos, mas a resposta terapêutica não foi satisfatória. “Depois de um tempo, eu sentia que, mesmo ajustando a dose, já não fazia mais muita diferença. Alguns remédios me causavam uma crise depressiva muito mais forte, eu já estava mal e ficava pior”, relata.
Depois de passar pelo que descreve como “a pior crise depressiva de sua vida”, que resultou em uma tentativa de suicídio no ano passado, Joana decidiu buscar uma clínica psiquiátrica conhecida por oferecer tratamento com medicamentos à base de maconha medicinal, em Porto Alegre (RS).
Uma avaliação feita na clínica, diz ela, mostrou que Joana estava com um quadro grave de depressão. Em outubro de 2021, após o parecer do médico, ela deu início ao tratamento à base de canabidiol, substância que, atualmente, ela ingere três vezes ao dia, em gotas, na dose recomendada pelo psiquiatra para o seu caso.
Ela afirma que demorou cerca de três meses para começar a sentir os efeitos do fármaco, mas considera que a diferença é notável. “Não estou totalmente curada. Mas foi a primeira vez que eu senti que talvez eu consiga ter uma vida normal”, diz ela, que também faz psicoterapia.
Joana confessa, no entanto, que não seguiu as orientações médicas na época em que começou a tomar os antidepressivos convencionais. “O máximo de tempo que fiquei tomando os remédios foi 10 meses. Sei que é errado, mas eu parava por causa dos efeitos colaterais”, afirma.
A profissional de marketing explora uma abordagem terapêutica que vem ganhando espaço no Brasil. Em 2020, a Abrace (Associação Brasileira de Cannabis e Esperança), única instituição que tem autorização da justiça brasileira para cultivar maconha medicinal no país, apresentava cerca de 850 pacientes associados com depressão. No ano passado, esse número já ultrapassava 1.500, um aumento de cerca de 76%.
A associação, que cultiva e fornece derivados da maconha medicinal na forma de óleos e pomadas mediante prescrição médica, estima que o total seja ainda maior, pois, muitas vezes, brasileiros procuram a entidade relatando sintomas de transtornos de ansiedade, mas também têm depressão.
Há um interesse e investimento crescentes em todo o mundo no uso de canabidiol e outros derivados da maconha medicinal para o tratamento de inúmeros problemas, desde dor crônica à esclerose múltipla. No Brasil, o uso compassivo de CBD é autorizado e regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina somente nos casos de crianças e adolescentes que têm epilepsia refratária, considerada de difícil tratamento.
A prescrição da substância para outras doenças acontece no modo off-label, ou seja, o médico avalia o risco-benefício do caso e assume a responsabilidade pela indicação. A importação de medicamentos à base de canabidiol está liberada no país desde 2015 e, a partir de 2019, a venda também foi autorizada nas drogarias e farmácias no país. O produto deve ser obtido mediante prescrição médica.
Em nota, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) informou que não dispõe de dados consolidados sobre quantos dos produtos de canabidiol importados foram feitos especificamente para pacientes com depressão ou outros transtornos psiquiátricos, uma vez que “essa indicação não consta no produto e está relacionada à avaliação do médico sobre o quadro clínico de cada pessoa”.
O QUE É O CBD E QUAL É A RELAÇÃO COM A DEPRESSÃO
Retirado da lista de substâncias proibidas da ONU no final de 2020, o CBD é um dos cerca de 500 compostos da planta Cannabis sativa (nome científico da maconha).
Apesar de extraída da maconha, a substância não provoca efeitos psicotrópicos — estes, na verdade, estão associados a outro composto da planta, o THC (tetrahidrocanabinol). Sabe-se que a maconha inalada para fins recreativos, por exemplo, é rica em THC e pobre em CBD.
O canabidiol pode ser usado isoladamente como medicamento ou também através do extrato de cannabis rico em CBD, muitas vezes chamado de cannabis medicinal, que pode conter diversos compostos da planta.
Tanto o CBD quanto outros derivados da cannabis atuam principalmente no chamado sistema endocanabinoide. Trata-se de uma rede de moléculas espalhadas por todo o corpo humano que recebeu esse nome pela semelhança estrutural com os canabinoides presentes na planta.
“É um sistema formado por endocanabinoides, enzimas e receptores que ajudam a regular várias funções no corpo humano, desde processos de aprendizagem até a regulação de emoções”, diz Ailane Araújo, médica integrativa e diretora do CBRMC (Centro Brasileiro de Referência em Medicina Canabinoide).
Essa rede de moléculas interage com dois receptores espalhados em diversos órgãos, o CB1, presente principalmente no cérebro, e o CB2, encontrado no sistema imunológico, por exemplo. Há evidências de que os endocanabinoides e os receptores CB1 também estejam envolvidos em transtornos emocionais, como ansiedade e depressão.
De acordo com José Alexandre de Souza Crippa, professor do Departamento de Neurociência e Ciências do Comportamento da FMRP-USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo), a literatura científica mostra que os derivados da C. sativa diferem nos efeitos que podem provocar em pessoas com depressão.
O uso de THC nesse grupo, por exemplo, está associado a um maior risco de episódios depressivos e suicídio. Extratos de cannabis, por sua vez, também podem precipitar sintomas psicóticos e favorecer ideação suicida de pacientes com quadros mais graves do transtorno.
No caso do canabidiol, contudo, o cenário é outro. Existem estudos em animais, realizados pelo grupo da USP de Ribeirão, demonstrando o potencial do CBD isolado — sem THC ou outros canabinoides — e efeitos antidepressivos.
Em experimentos com camundongos, por exemplo, o CBD reverteu sintomas depressivos. “Também foi demonstrado que apresenta um papel neuroprotetor em relação à neurotoxicidade da depressão, em áreas límbicas e paralímbicas, como o hipocampo [estrutura que pode diminuir de volume em algumas pessoas com depressão]”, aponta o pesquisador.
Fora dos testes em laboratório, a prescrição de canabidiol para pacientes com a doença divide opiniões. Enquanto alguns médicos veem no produto a solução para pacientes que não responderam bem ao tratamento tradicional associado à doença, outros profissionais pedem cautela na prescrição de CBD para indivíduos diagnosticados com depressão.
A médica Ailane Araújo diz que uma das possíveis vantagens do uso do composto para tratar a doença é a ação relativamente rápida do CBD, associada ao seu perfil de segurança considerada alta.
Segundo ela, os antidepressivos comerciais costumam demorar de duas a quatro semanas para promover efeitos significativos, podem desencadear diversos efeitos colaterais e podem ser ineficazes. Por isso, o desenvolvimento de medicamentos que abordem essas limitações é tido como fundamental para melhorar a saúde pública.
No entanto, embora estudos com animais apontem para o efeito antidepressivo do composto, ainda faltam evidências científicas sólidas sobre os riscos e benefícios do uso do medicamento em humanos com depressão.
“Apesar de interessante do ponto de vista de pesquisa, resultados de estudos pré-clínicos de forma alguma podem ser imediatamente revertidos para a prática clínica, de modo direto”, destaca o médico José Crippa, referência no cenário científico pelas pesquisas com canabidiol. “Desconheço ensaios clínicos controlados usando o CBD em pacientes com depressão”, diz o psiquiatra.
POTENCIAL ANTIDEPRESSIVO
Na ciência, nem todas as evidências científicas têm o mesmo peso. Experiências como as da profissional de marketing Joana, por exemplo, são conhecidas como relatos anedóticos. Apesar de apontarem que existe um benefício do remédio para a redução dos sintomas depressivos, elas não são consideradas evidências robustas para amparar a prescrição do CBD como primeira linha de tratamento contra a depressão.
“Relatos anedóticos são importantes para os cientistas porque sinalizam um caminho para a gente seguir, mas eles não são considerados uma evidência forte. São considerados uma evidência muito baixa”, explica o neurocientista Claudio Queiroz, do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
Queiroz explica que, para testar um medicamento, o ideal é submetê-lo a grandes ensaios clínicos randomizados, que comparam o princípio ativo com o placebo, sem que nem os pesquisadores nem os voluntários saibam quem está tomando o quê (é o chamado “padrão ouro” da medicina baseada em evidência).
No caso do CBD, afirma o neurocientista, isso já foi feito em relação a algumas epilepsias, por exemplo, e é por essa razão que, hoje, a indicação mais sustentada pelas provas científicas é a prescrição da substância para a condição, como indica uma revisão sistemática publicada no último dia 19 de agosto.
Segundo o levantamento, publicado no periódico revisado por pares BMC Medicine, que avaliou estudos já publicados com quatro derivados da C. sativa em diversas doenças — incluindo depressão —, a única patologia em que o canabidiol mostra um alto grau de eficácia de evidência no tratamento é a epilepsia, em particular a síndrome de Dravet e a síndrome de Lennox-Gastaut.
O estudo também aponta que há um grau de evidência alto/moderado sobre a eficácia da substância para o tratamento da doença de Parkinson. No caso da depressão, contudo, o grau de evidência ainda é considerado baixo. E é tido como muito baixo para a ansiedade, por exemplo.
“Assim como para qualquer medicamento, como ficou evidente em relação à cloroquina na pandemia, é fundamental passar por ensaios clínicos controlados, com pacientes, para evidenciarmos a segurança, toxicidade e eficácia do CBD em pacientes com depressão”, afirma José Crippa.
Sem estudos clínicos padrão-ouro com o CBD associado à depressão, os especialistas afirmam que falta entender o seu perfil de segurança, as melhores vias de administração, formulação e doses, além do potencial de interação farmacológica com antidepressivos e em qual população de pacientes (por exemplo, depressão leve-moderada ou grave, depressão bipolar ou psicótica etc.) a aplicação seria mais adequada.
CUIDADOS AO PRESCREVER
A Associação Brasileira de Psiquiatria não recomenda o uso de CBD ou quaisquer canabinoides para o tratamento de doenças psiquiátricas. A prescrição off-label, contudo, já é uma realidade. Por isso, é fundamental treinar os médicos para que não cometam erros ao indicar canabidiol para pessoas com depressão, destaca a médica Ailane Araújo.
“Tem muitos médicos que estão fazendo prescrição de forma errada”, alerta a profissional, pioneira no país na criação de cursos de treinamento destinados a médicos sobre medicina à base de cannabis. Ela diz que é preciso observar os riscos de interação medicamentosa e se certificar de que a dose prescrita esteja de acordo com o perfil do paciente, por exemplo.
“O produto vai somar desde que se saiba empregar, dosar, indicar. É preciso ter esse conhecimento, não é sair prescrevendo qualquer produto à base de cannabis para qualquer pessoa por aí, recomenda Araújo.
Para a médica, com a quebra progressiva dos estigmas em torno da substância, a tendência é de que a busca por seus efeitos terapêuticos cresça cada vez mais. Por isso, diz ela, é necessário investir em pesquisas. “Muitas vezes, o paciente começa tomando um antidepressivo, e termina com dois ou três, cheio de efeito colateral e desesperado porque não consegue melhorar. Precisamos estudar novos produtos para ajudar essas pessoas a saírem desse quadro depressivo, porque isso não é vida”
FOLHAPRESS