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Investigação internacional prende espiões de elite russos que tinham até filhos no exterior

espioes-605x400 Investigação internacional prende espiões de elite russos que tinham até filhos no exterior

Espiões de investigação eram da categoria de ‘ilegais’, que fingem ser moradores estrangeiros

Darja Stefancic, pintora eslovena conhecida por suas paisagens coloridas, achou estranho, mas não suspeitou de investigação quando uma obscura galeria de arte on-line, administrada por uma mulher da Argentina, repentinamente a contatou e a convidou para se juntar à sua pequena lista de artistas.

Suspeitando que se tratasse de um golpe, a artista temeu que a tal galeria, da qual praticamente ninguém na pequena e unida cena artística da Eslovênia tinha ouvido falar, “quisesse enganar as pessoas”.

E, de fato, ela queria – mas de uma forma que superou até mesmo as suspeitas mais sombrias.

A galeria on-line era uma fachada para o serviço de inteligência russo, parte de uma elaborada rede de espiões disfarçados e treinados para se passar por argentinos, brasileiros e outros estrangeiros. O esquema foi montado pela agência de inteligência estrangeira da Rússia, a SVR, em várias partes da Europa.

Eram versões reais dos protagonistas principais fictícios da série de TV “The Americans”, inspirada na prisão, em 2010, de uma rede de verdadeiros agentes russos disfarçados que agiam dentro dos Estados Unidos.

A Rússia – e, antes dela, a União Soviética – tem uma longa história de investimentos pesados nos chamados “ilegais”, espiões que se infiltram em países-alvo e lá permanecem por muitos anos. Ao contrário dos espiões “legais” que operam sob cobertura diplomática em embaixadas russas, os “ilegais” não têm imunidade se sofrerem processos na justiça e tampouco conexões explícitas com a Rússia, além de serem extremamente difíceis de detectar.

Vladimir Putin, presidente da Rússia e ex-oficial da KGB (a principal agência de segurança interna da União Soviética que atuou de 1954 até sua dissolução, em 1991), “dedicou enormes recursos a essa modalidade de espionagem bastante excêntrica. Putin tem um verdadeiro fetiche pelos ilegais, e isso remonta à sua época na KGB”, disse Calder Walton, diretor de pesquisa do Projeto de Inteligência da Escola Kennedy, de Harvard.

A dona da galeria de arte na Eslovênia, cujo nome verdadeiro é Anna Dultseva, fez um trabalho tão bom ao personificar uma artista argentina chamada Maria Rosa Mayer Munos que, de acordo com o Kremlin, nem mesmo seus dois filhos sabiam que a família tinha laços com a Rússia até que foram levados de avião para Moscou, na quinta-feira, primeiro de agosto, como parte de uma troca de prisioneiros feita entre o Leste e o Oeste.

Putin cumprimentou as crianças – uma menina de 12 anos e um garoto de nove – em espanhol, a língua que a família falava na Eslovênia, além do inglês, para disfarçar suas conexões com a Rússia. “Buenas noches”, pode-se ouvir o presidente russo dizendo às crianças em um vídeo da cerimônia de boas-vindas feita em um aeroporto de Moscou, que foi divulgado pela televisão estatal. Também estava lá para cumprimentá-los Sergey Naryshkin, chefe da agência de inteligência SVR.

Investigação e presos

Dultseva e seu marido foram presos após investigação, em dezembro de 2022, quando autoridades eslovenas, que já monitoravam o casal havia meses depois da denúncia de um serviço de inteligência estrangeiro, invadiram a confortável casa da família em Crnuce, subúrbio de Liubliana, capital da Eslovênia.

Uma pessoa que possui informações sobre o caso contou que a batida na casa foi programada para pegar o casal em flagrante, enquanto se comunicava com Moscou usando um equipamento especial que evitava o uso de linhas telefônicas e conexões com a internet. Segundo essa pessoa, a denúncia veio do Reino Unido, país que o casal visitava com frequência sob o pretexto de fazer negócios. Dultseva organizou duas exposições de arte na cidade escocesa de Edimburgo e visitou o Reino Unido várias vezes vestida na pele de Mayer Munos.

Casal apontado nas investigações fingiam ser empresários argentinosManca Juvan/The New York Times

Dultseva e seu marido, Artem Dultsev (que se disfarçou na Eslovênia como argentino, com o nome de Ludwig Gisch, e onde administrava um negócio próprio, uma falsa startup de alta tecnologia), conseguiram recolher muitas informações como espiões antes que fossem presos em 2022. O que juntaram e passaram para o governo russo ainda está sendo avaliado.

Vizinhos em Crnuce, o distrito de Liubliana onde moravam, dizem que a família era reservada, tinha um cachorro pequeno e raramente recebia visitas.

As crianças, que foram colocadas em um orfanato depois da prisão dos pais, frequentaram a Escola Internacional Britânica nas proximidades, cujo custo anual é de mais de US$ 10 mil ao ano por aluno, e estava muito além do que o casal podia pagar, com base nos relatórios financeiros que cada qual teve de informar para montar seu negócio no país.

A galeria de arte de Dultseva, chamada 5′14, relatou um prejuízo de 10.827 euros (quase US$ 12 mil) em 2019, um lucro de 483 euros em 2020 e um lucro de 3.032 euros em 2021, e esse foi o último ano no qual apresentou os resultados anuais da empresa às autoridades locais.

De acordo com Tevz Logar, importante curador esloveno, os ganhos modestos e a baixa qualidade das obras de arte da galeria deveriam ter despertado suspeitas. “Mas a arte na Eslovênia é um espaço seguro para fraudes, porque não há exames minuciosos ou controles. A maior parte do trabalho que Dultseva oferecia para venda é o tipo de arte ordinária que você encomenda da China”, acrescentou ele.

A empresa do marido, DSM & IT, informou lucros totais de apenas alguns milhares de euros por ano. E as duas empresas tinham apenas um funcionário.

“Eles nunca cumprimentavam ninguém e viviam uma vida totalmente separada”, disse a vizinha Majda Kvas, de 93 anos, que mora em frente à antiga casa dos espiões, construção de três andares com um pequeno jardim ladeado por uma cerca de madeira. Kvas contou que os outros vizinhos às vezes fofocavam sobre quem era o casal e o que fazia, mas, geralmente, o deixavam de lado, pois nunca causava problemas. “Achei que os dois fossem da Venezuela”, comentou ela.

Atividades secretas

Vojko Volk, secretário de Estado da Eslovênia, responsável pelos serviços de segurança e inteligência, declarou na sexta-feira, dois de agosto, que os investigadores ainda estavam tentando descobrir o que o casal fazia exatamente antes de sua prisão em 2022, mas “não há dúvida de que eles eram muito, muito, muito importantes”.

A investigação resultou na descoberta de grandes somas de dinheiro na casa deles gerou especulações de que talvez estivessem envolvidos no financiamento de operações russas na Europa, incluindo equipes de sabotagem. Mas Volk minimizou essa possibilidade.

Marjan Miklavcic, ex-chefe da inteligência militar da Eslovênia, afirmou que agentes russos adormecidos alvo da investigação eram frequentemente plantados sem uma missão específica e serviam como uma força de reserva oculta que poderia ser ativada em um momento de crise.

O falso casal argentino se mudou para a Eslovênia em 2017, mas é provável que só tenha sido totalmente ativado em seguida ao início da guerra em larga escala na Ucrânia, cinco anos depois, quando supostos espiões foram expulsos de vários países europeus, disse Miklavcic.

Em novembro de 2022, o chefe do serviço de segurança da Grã-Bretanha, o MI5, informou que mais de 400 espiões russos tinham sido expulsos de toda a Europa, desferindo “o golpe estratégico mais significativo contra os serviços de inteligência russos na história europeia recente”.

Vida monótona

A distância entre a forma como os espiões são retratados no cinema e sua vida real, muitas vezes monótona e por vezes incompetente, foi vivenciada em primeira mão por Nina Khrushcheva, acadêmica russa da New School, em Nova York. No início dos anos 2000, ela teve um aluno chamado Richard Murphy, que dizia ser natural da Filadélfia, mas “se parecia com Boris Yeltsin e tinha um forte sotaque russo”, Khrushcheva lembrou.

Murphy, cujo nome verdadeiro é Vladimir Guryev, foi preso com a esposa em 2010 por espionagem, em Nova Jersey. Eles e seu grupo de espiões inspiraram a série “The Americans”. Mais tarde, foram deportados para a Rússia como parte de outro acordo de troca de prisioneiros. Segundo Khrushcheva, a prisão não foi nenhuma surpresa, já que “era claro que Murphy estava mentindo descaradamente”.

Os falsos argentinos na Eslovênia parecem ter sido agentes de alto calibre. Dultseva, a dona da galeria, falava espanhol sem sotaque, de acordo com Mariken Heijwegen, artista holandesa que a usou como agente de vendas. Ela disse que conheceu Dultseva em uma feira de arte na Croácia e vendeu duas pinturas graças ao trabalho da russa. “De fato, ela parecia ser argentina e era muito doce e gentil”, recordou.

A artista disse que não tinha ideia de que a mulher que conhecia como Maria Rosa Mayer Munos fora presa como espiã russa. Só se deu conta quando as pinturas que havia deixado com ela na Eslovênia foram repentinamente enviadas de volta para a Holanda.

Damian Kosec, veterano da cena artística da Eslovênia e dono da maior galeria física e on-line do país, comentou que nunca tinha ouvido falar dos negócios de Dultseva até que as notícias da prisão dela e do marido surgiram na mídia. “Escolher a arte como fachada fazia sentido, já que há tão pouco dinheiro envolvido nisso na Eslovênia que ninguém no governo presta muita atenção a esse ramo”, acrescentou.

Kosec disse que há anos vem pressionando em vão as autoridades governamentais para reprimir operadores desonestos que vendem falsificações. “Ninguém se importa. Você pode fazer o que quiser no negócio de arte aqui. Esses russos não se importavam com arte. Só precisavam de uma fachada para se esconder.”

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