Nobel da Paz de 2021 vai para jornalistas Maria Ressa e Dmitri Muratov
Os jornalistas Maria Ressa, das Filipinas, e Dmitri Muratov, da Rússia, ganharam o Prêmio Nobel da Paz de 2021. O anúncio foi feito na manhã desta sexta-feira (8) pelo comitê norueguês do Nobel.
Ressa, 58, repórter filipino-americana, é editora do site de jornalismo investigativo Rappler e foi presa pelo governo de Rodrigo Duterte, em 2019, acusada de violar uma controversa legislação contra “difamação cibernética” devido a uma reportagem em que acusava um empresário filipino de atividades ilegais.
Já Muratov, 59, é cofundador e editor-chefe do Novaia Gazeta (novo jornal, em russo), um dos principais jornais de oposição ao governo de Vladimir Putin. O comitê norueguês descreveu o veículo como o mais independente da Rússia atualmente.
A escolha, justificou a porta-voz do comitê, Berit Reiss-Andersen, foi um aceno à defesa das liberdades de imprensa e de expressão, “pré-requisitos para sociedades democráticas e para a paz duradoura”.
“Esse prêmio não vai resolver os problemas que os jornalistas e a liberdade de expressão vêm enfrentando, mas joga luz sobre o trabalho da imprensa e o quão difícil é exercer a liberdade de expressão —não apenas em regiões de conflito armado, mas em todo o mundo”, afirmou.
Ressa e Muratov foram escolhidos em um universo de 329 candidatos, que incluía 234 indivíduos e 95 organizações —o terceiro maior número de todos os tempos da láurea. Os demais nomes na lista só serão tornados públicos daqui a cinco décadas, seguindo as regras do prêmio.
A jornalista se tornou a 18ª mulher a receber o Nobel da Paz desde que a distinção começou a ser entregue, em 1901. Numa conta do Rappler nas redes sociais, Ressa disse esperar que o prêmio seja “um reconhecimento de como é difícil ser jornalista hoje” e que “dê energia para seguir na batalha pelos fatos”.
A batalha a qual se refere envolve a tentativa do governo filipino de calar as vozes do site que lidera. Ressa está proibida de sair do país, já foi presa duas vezes e pagou fiança outras sete. No episódio mais recente, foi julgada devido a um texto publicado em 2012 que liga um empresário a assassinato e tráfico de drogas, com base em informações de um relatório de inteligência repassado por fonte anônima.
Em 2018, ela foi escolhida pela revista Time como uma das Pessoas do Ano. Em comunicado, o comitê norueguês justificou a premiação do Nobel argumentando que o “Rappler concentrou a cobertura crítica na controversa e assassina campanha antidrogas do regime de Duterte”. Seguiu: “O número de mortes é tão alto que a campanha se assemelha a uma guerra contra a própria população do país”.
Ao responder às perguntas de repórteres, a porta-voz do comitê aproveitou para lembrar e fazer coro às críticas de Ressa ao uso de redes sociais, como o Facebook, para proliferar desinformação. “Temos mais imprensa e informação do que nunca, mas também temos o abuso e a manipulação da liberdade de expressão e do discurso público com as fake news”, disse Reiss-Andersen.
“A liberdade de expressão é cheia de paradoxos. Fake news também são violações da liberdade de expressão. Toda liberdade de expressão tem limites.”
Muratov, parceiro de Ressa na premiação do Nobel, é conhecido por investigações sobre corrupção no governo russo e coberturas sobre o conflito na Ucrânia. Ele já perdeu seis colegas do jornal, mortos desde 2001 —uma das quais Anna Politkovskaia, morta a tiros no dia do aniversário de Putin em 2006. O prêmio vem um dia após expirar o prazo para que os suspeitos pelo assassinato da repórter fossem indiciados.
“Apesar das mortes e das ameaças, Muratov se recusou a abandonar a política independente do jornal”, destacou a porta-voz do comitê. “Ele sempre defendeu o direito dos jornalistas de escrever sobre o que quiserem, desde que cumpram os padrões profissionais e éticos do jornalismo.”
O editor russo dedicou a premiação aos colegas mortos e disse que pretende transferir parte do dinheiro do prêmio para uma fundação russa que ajuda crianças com doenças graves e raras.
Ainda que seja alvo de críticas de Muratov, o Kremlin parabenizou o jornalista pela premiação. “Ele trabalha persistentemente de acordo com seus próprios ideais, é dedicado a eles, talentoso e corajoso”, afirmou o porta-voz Dmitri Peskov a repórteres pouco após o anúncio do comitê norueguês.
Horas depois, o Ministério da Justiça local anunciou ter passado a rotular uma série de repórteres e publicações como “agentes estrangeiros”, entre eles um jornalista da britânica BBC.
Muratov é o primeiro russo a ganhar o Nobel da Paz desde o ex-líder soviético Mikhail Gorbatchov, laureado em 1990 pelo papel desempenhado nas mudanças radicais nas relações Ocidente-Oriente. O político, aliás, ajudou a fundar o Novaia Gazeta em 1993, com parte do dinheiro que recebeu do prêmio.
No país, a escolha do jornalista foi criticada por aliados do blogueiro e ativista Alexei Navalni, opositor de Putin e antes apontado como um dos favoritos para o Nobel. “Em vez de discursos pretensiosos e hipócritas sobre ‘liberdade’, eles poderiam proteger uma pessoa que sobreviveu a uma tentativa de assassinato e agora é feita refém pelos assassinos”, tuitou Ruslan Shavedinov, um dos líderes da Fundação Anticorrupção, criada por Navalni e hoje considerada extremista pela Justiça russa.
Além de temas políticos (como os que envolvem Navalni) e ambientais (apontando para a ativista sueca Greta Thunberg), a liberdade de expressão rondava os nomes cotados para ganhar o Nobel da Paz. A ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF), fundada em 1985 e responsável por monitorar, em 130 países, as relações de chefes de governo com a imprensa local, era apontada como possível vencedora neste ano.
O ambiente para a imprensa livre, descrito pelo comitê norueguês como preocupante, vem sendo cercado em diferentes países. De acordo com os dados mais recentes da RSF, 24 jornalistas foram mortos desde o início do ano. Outros 350 estão presos. Um dos mortos é das Filipinas, país de Maria Ressa: Renante “Rey” Cortes foi assassinado por assaltantes em julho após apresentar seu programa de rádio.
Há três meses, a organização lançou uma lista de “predadores da imprensa livre”, reunindo 37 chefes de Estado que asfixiam o ambiente da liberdade de imprensa. O presidente russo, Vladimir Putin, e o filipino, Rodrigo Duterte, integram a lista —bem como o brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido).
No Brasil, a Comissão de Liberdade de Expressão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) expressou satisfação com a escolha dos vencedores do Nobel da Paz. “O reconhecimento da relevância da liberdade de expressão para a paz mundial é um alerta para todos aqueles que militam contra sua limitação ou supressão”, disse o órgão, em nota. “Em especial governos autoritários, inclusive em países democráticos que, pelo assédio judicial ou uso do Estado Policial, ameaçam e vilipendiam a dignidade da pessoa humana dos jornalistas e de todos os demais profissionais que atuam, direta ou indiretamente, no segmento, inclusive os das redes comunitárias e sociais.”
O prêmio de Ressa e Muratov é o primeiro para jornalistas desde que o alemão Carl von Ossietzky o recebeu, em 1935, por revelar o programa secreto de rearmamento de seu país no pós-guerra. Antes dele, dois jornalistas haviam sido laureados: o italiano Ernesto Teodoro Moneta, em 1907, por seu trabalho para um entendimento entre a França e a Itália, e o suíço Élie Ducommun, pela direção do Bureau da Paz.
O Nobel foi concedido pela primeira vez em 1901. Inicialmente, eram cinco categorias: paz, literatura, química, física e medicina. Uma sexta —economia— foi adicionada décadas mais tarde, em 1969.
Até a metade do século 20, os vencedores da categoria paz eram “políticos ativos que procuravam promover a paz internacional, a estabilidade e a justiça por meio da diplomacia e de acordos internacionais”. Desde o fim da Segunda Guerra, o prêmio passou a reconhecer esforços nas áreas de desarmamento, democracia e direitos humanos. Na virada para o século 21, o foco foi ampliado para incluir iniciativas que tentem conter a crise climática causadas pelo homem.
Há alguns anos, o Nobel da Paz vem recebendo críticas devido às suas escolhas. Em 2019, por exemplo, o laureado foi o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, contemplado por ter encerrado a guerra com a Eritreia —um ano depois, porém, ele liderou outro confronto no norte do país.
Durante a cerimônia de anúncio da premiação nesta sexta, a porta-voz do comitê norueguês, Berit Reiss-Andersen, foi questionada sobre a guerra travada pelo governo e por combates regionais da região do Tigré, mas disse que não comentaria premiações anteriores. Ainda assim, declarou que “a situação para a liberdade de expressão na Etiópia está muito longe do ideal e enfrentando severas restrições”.
Já em 2009, o então presidente dos EUA, Barack Obama, estava em seu primeiro ano de mandato quando foi laureado. O próprio democrata disse não saber o motivo de ter sido agraciado. Mais recentemente, na quinta (7), Shimon Peres (1923-2016), um dos fundadores de Israel e Nobel da Paz em 1994, foi acusado de assédio sexual por uma ex-diplomata.
Entregue apenas a autores vivos, o prêmio nasceu para cumprir o testamento do químico Alfred Nobel. O curioso é que, em vida, o sueco ficou conhecido por ter inventado um artefato utilizado em guerras: a dinamite. Seu pai era dono de uma fábrica de explosivos em São Petersburgo, e foi lá que um jovem Nobel, com pouco mais de 15 anos, interessou-se pela nitroglicerina, elemento essencial do explosivo.
A descoberta não tinha o objetivo de ser usada em campos de batalha. A ideia inicial de Nobel era que o artefato lhe ajudasse em seu trabalho: como engenheiro, construía pontes e prédios em Estocolmo, e a dinamite poderia implodir pedras para tal fim. Ele patenteou a invenção nos EUA em 1867, quando tinha 34 anos. Nas décadas seguintes, fez disso um negócio lucrativo e no final da vida era dono de 355 patentes, boa parte delas relativas a novas descobertas feitas a partir da dinamite.
Pouco antes de morrer de hemorragia cerebral, aos 63, deixou em seu testamento que 94% de seus ativos deveriam ser destinados à criação de um fundo para premiar iniciativas que ajudassem a humanidade.
Com The New York Times e Reuters