Os ‘voos-fantasma’ mantidos pelas companhias aéreas mesmo quase vazios
Por que um avião que não leva ninguém levantaria voo?
Por que uma companhia aérea pagaria o piloto e a tripulação, encheria o tanque de um avião comercial de combustível e decolaria sem transportar carga ou passageiros suficientes para justificar o gasto?
Isso realmente acontece?
Sim, todos os meses na Europa decolam dezenas de aviões que estão basicamente vazios ou com menos de 10% da sua capacidade — e que são conhecidos como “voos fantasmas”.
Há anos, o fenômeno — que não ocorre na América Latina ou no Caribe — é uma realidade, mas com a chegada da pandemia de covid-19 e as restrições às viagens, o problema se tornou mais premente.
Muitos aeroportos exigem que as companhias aéreas realizem pelo menos 80% dos voos programados para manter seus direitos de pouso e decolagem em determinados horários (slots).
Isso deixa as empresas com uma margem de cancelamento de 20%.
Se suas operações não atenderem a esses percentuais, elas são obrigadas a operar aviões vazios para manter seus slots ou, no ano seguinte, correm o risco de perder os melhores horários comerciais.
Decolar de Londres às 6h da manhã não é o mesmo que decolar às 8h ou 9h.
Tampouco é igual pousar em Madri às 17h e à 1h da manhã, quando o metrô já fechou e as conexões de transporte com o centro da cidade são mais complicadas.
O preço também não é o mesmo.
‘Use ou perca’
É por isso que, nos aeroportos mais congestionados, e para organizar todo o tráfego aéreo, a Comissão Europeia e a Administração Federal de Aviação (FAA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos aplicam a regra “use [o slot] ou perca”.
“Os voos fantasmas são definidos como aqueles operados voluntariamente pelas companhias aéreas exclusivamente para preservar os direitos históricos sobre seus slots”, explica o Conselho Internacional de Aeroportos (ACI, na sigla em inglês).
A entidade, que representa os interesses dos aeroportos perante os governos, acrescenta que “os voos fantasmas não são colocados à venda, não transportam passageiros e não geram receitas para as companhias aéreas”.
Muitos acreditam que os voos fantasmas não beneficiam ninguém — e que é uma prática desnecessária e perdulária.
Outros creem que a distribuição coordenada de slots nos aeroportos que estão em sua capacidade máxima possível, garante a concorrência entre as companhias aéreas e beneficia os consumidores.
“São voos que, a priori, não fazem sentido econômico e muito menos ambiental. Se queima muita querosene, o que tem um claro impacto nas mudanças climáticas”, diz Diego R. González, presidente da Associação Mundial de Advogados de Aeroportos.
Companhias aéreas tradicionais e ‘low cost’
A chave está justamente no aspecto comercial.
“Os slots são aqueles horários ou turnos atribuídos. Se não os utilizam, são penalizadas. No ano seguinte, a autoridade aeroportuária cede para outra empresa, e para as companhias aéreas, é uma forma de perder mercado”, diz González.
Para o advogado, há uma disputa entre as companhias aéreas tradicionais e as recém-chegadas ao mercado, o que incentiva as transportadoras a se esforçarem ao máximo para cumprir com o regulamento, mesmo que seja voando vazias.
“As companhias aéreas que dominam o mercado fazem isso porque têm os melhores horários, que são os mais caros. São as rotas que chegam aos aeroportos no horário central em termos de conveniência”, explica.
“Como há uma transportadora dominante que não tem concorrência em uma rota em determinado horário, o que acontece é que ela não baixa os preços. Há um problema de concorrência entre as companhias aéreas que lutam por um recurso escasso, como infraestrutura aeroportuária”, acrescenta.
Willie Walsh, diretor da Associação Internacional de Transporte Aéreo, argumenta que esse modelo de negócio incentiva as companhias aéreas a voar com baixa capacidade ou vazias para manter os slots.
“Se você voa entre dois aeroportos com capacidade regulada, precisa ter a permissão de ambos para não voar. Caso contrário, você tem que operar”, explicou o diretor em um vídeo, ao mesmo tempo em que disse que não acredita que haja companhias aéreas adotando esta prática de forma deliberada.
As companhias aéreas pedem maior flexibilidade na regra.
Mas o setor também aponta que antes de botar para voar um avião vazio, a companhia aérea afetada poderia baixar os preços tentando atrair viajantes para o voo com problema.
Uma política rara de se ver.
Dano ambiental
A todo este frágil equilíbrio da indústria de aviação se somam os danos ambientais.
A aviação é responsável por cerca de 2% das emissões globais de CO2, mas o setor como um todo responde por cerca de 3,5% do aquecimento global devido à atividade humana.
E é um setor que vai continuar crescendo.
Desde 2000, as emissões aumentaram cerca de 50%, e a expectativa é de que a indústria cresça mais de 4% a cada ano nas próximas duas décadas, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE).
O dano ambiental dos “voos fantasmas na Europa”, segundo o Greenpeace, é “equivalente às emissões anuais de mais de 1,4 milhão de carros”.
E tudo isso em um momento em que a indústria da aviação se comprometeu a zerar as emissões líquidas de carbono até 2050.
Não acontece na América Latina
A situação na América Latina e no Caribe é diferente.
Deve-se ter em mente que o sistema de slots está em vigor nos aeroportos com capacidade no limite.
“Obviamente há aeroportos congestionados em alguns países como Brasil ou México e em determinados horários no Peru e na Colômbia, mas na região isso não está acontecendo porque a capacidade dos aeroportos não chegou a um ponto em que precisem de restrições”, diz González.
É que, embora após a pandemia o volume de passageiros esteja se recuperando, o número de movimentos de aeronaves não é tão representativo a ponto de obrigar os aeroportos a tomar medidas.
“A Europa está sofrendo, entre outras coisas, com uma demanda latente. Ou seja, gente que estava esperando tudo abrir para viajar. Também com os voos resgatados que não foram feitos durante a pandemia. Aquela passagem que você comprou e ficou lá até tudo reabrir”, avalia Rafael Echevarne, diretor geral da ACI para a América Latina e o Caribe.
G1