Como cientistas conseguiram mapear cidade onde a Aids ‘nasceu’
Sob a ótica atual, é fácil ver por que a Aids parecia tão misteriosa e assustadora quando os médicos americanos começaram a se deparar com ela, há 35 anos.
Os sistemas imunológicos de pessoas jovens e saudáveis eram tomados de assalto e deixados fracos e vulneráveis. E a doença parecia ter surgido do nada.
Hoje sabemos muito mais sobre como e por que o HIV – o vírus causador da Aids – se tornou uma pandemia global. Como era de se esperar, por ser uma doença sexualmente transmissível, profissionais do sexo foram um fator importante para isso. Mas não menos importante foram os papéis do comércio, do colapso do colonialismo e as mudanças sociopolíticas do século 20.
O HIV logicamente não apareceu do nada. Ele provavelmente surgiu como um vírus que afetava macacos e grandes primatas no centro-oeste da África.
De lá ele passou para humanos em várias ocasiões, possivelmente porque as pessoas consumiam carne de caça infectada. Algumas pessoas, por exemplo, apresentam infecção por uma versão do HIV mais próxima à encontrada em macacos mangabey cinzentos (Cercocebus atys). Mas o HIV que veio dos macacos não se tornou um problema global.
Nós somos mais próximos dos grandes primatas, como gorilas e chimpanzés, do que dos macacos. Mas mesmo quando o HIV passou desses primatas para populações humanas, não se transformou necessariamente em uma questão de saúde generalizada.O HIV originário dos grandes primatas pertence tipicamente a um tipo de vírus chamado HIV-1. Apenas uma forma do HIV se espalhou amplamente após passar para os humanos. Essa versão, provavelmente originária dos chimpanzés, é chamada de HIV-1 grupo M.
Mais de 90% das infecções por HIV pertencem a esse grupo. O que levanta uma questão óbvia: o que há de tão especial sobre o HIV-1 do grupo M?
Um estudo publicado em 2014 sugere uma resposta surpreendente: pode não haver nada particularmente especial sobre esse tipo do HIV.
Ele não é particularmente mais infeccioso, como poderia ser de se esperar. Em vez disso, parece que simplesmente essa forma de HIV se aproveitou do acaso. “Fatores ecológicos, em vez de fatores evolutivos, levaram o vírus a se espalhar rapidamente”, observa o pesquisador Nuno Faria, da Universidade de Oxford.
Faria e seus colegas construíram uma árvore genealógica do HIV, observando uma ampla gama de genomas do HIV coletada de cerca de 800 pessoas infectadas na África central.
Os genomas incorporavam novas mutações a uma velocidade regular, então ao comparar duas sequências de genomas e comparar as diferenças, eles podiam identificar quando as duas amostras tiveram um ancestral comum pela última vez. Essa técnica é amplamente usada, por exemplo, para chegar à conclusão de que nosso último ancestral comum com os chimpanzés viveu há 7 milhões de anos.
“Os vírus de RNA, como o HIV, evoluem aproximadamente 1 milhão de vezes mais rápido que o DNA humano”, diz Faria. Isso significa que o “relógio molecular” do HIV anda muito rápido.
Tão rápido que Faria e seus colegas descobriram que todos os diferentes genomas do HIV tiveram um ancestral comum há não mais que cem anos. A pandemia do HIV-1 do grupo M provavelmente começou nos anos 1920.
Como os pesquisadores sabiam de onde cada uma das amostras de HIV havia sido coletada, eles conseguiram determinar uma cidade específica na origem da pandemia: Kinshasa, hoje capital da República Democrática do Congo.
A essa altura, os pesquisadores mudaram de rumo. Eles se voltaram então aos registros históricos para tentar descobrir por que infecções por HIV em uma cidade africana nos anos 1920 geraram uma pandemia.
E uma sequencia provável de eventos rapidamente se tornou óbvia.
Nos anos 1920, a República Democrática do Congo era uma colônia belga, e Kinshasa – então conhecida como Leopoldville – tinha acabado de se tornar a capital. A cidade se tornou um destino bastante atraente para jovens trabalhadores em busca de enriquecimento, e para profissionais do sexo dispostas a ajudá-los a gastar seus rendimentos. O vírus rapidamente se espalhou pela população.
E ele não ficou confinado à cidade. Os pesquisadores descobriram que a capital do Congo belga era, nos anos 1920, uma das cidades mais conectadas da África. Aproveitando-se de uma extensa rede ferroviária usada por centenas de milhares de pessoas anualmente, o vírus se espalhou para cidades distantes até 1.500 km em apenas 20 anos.
Até que o começo dos anos 1960 trouxe uma nova mudança. O Congo belga ficou independente e se tornou uma atraente fonte de empregos para francófonos de todo o mundo, incluindo o Haiti. Quando esses jovens haitianos voltaram alguns anos depois, levaram com eles uma forma particular do HIV-1 grupo M, chamada “subtipo B”, para o outro lado do Atlântico.
Ele chegou aos Estados Unidos nos anos 1970, justamente quando a revolução sexual e as atitudes homofóbicas levavam à formação de grandes concentrações de homens gays em cidades cosmopolitas como Nova York e San Francisco. Novamente, o HIV se aproveitou da situação sociopolítica para se espalhar rapidamente pelos Estados Unidos e pela Europa.
“Não há razão para acreditar que outros subtipos do vírus não se espalhariam tão rapidamente quanto o subtipo B, diante de circunstâncias semelhantes”, afirma Faria.
Mas a história da disseminação do HIV ainda não acabou.
Em 2015, houve um surto de infecções no Estado americano de Indiana, associado com uso de drogas injetáveis.
O Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos vem analisando sequências do genoma do HIV e dados sobre o lugar e o momento da infecção, segundo o pesquisador Yonatan Grad, da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, em Boston.
A experiência mostra como o estudo de doenças como o HIV sob o prisma da sociedade humana podem ajudar no seu controle. “Esses dados ajudam a entender a extensão do surto e ajudarão a entender quando as intervenções de saúde pública funcionaram”, conclui Grad.
BBC Brasil