“As Torturas na Venezuela são sistemáticas”
Cristopher Figuera (Punta de Mata, Venezuela, 55 anos) ainda guarda o documento de uma página e meia que enviou ao seu “comandante em chefe”, Nicolás Maduro, no início do ano. Nele, pedia-lhe que suprimisse os poderes da Assembleia Nacional Constituinte chavista e que mudasse o Conselho Nacional Eleitoral. Basicamente, que propiciasse sua saída. Ou ao menos uma saída para a situação insustentável que a Venezuela vive. “Pareceu-lhe uma atitude derrotista e covarde da minha parte” é o resumo da resposta feito por Figuera, ex-chefe do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin) –a temida polícia política venezuelana–, um dos artífices da frustrada ofensiva militar de 30 de abril.
“Não podemos falar de fracasso. Trata-se de um longo amanhecer que está em andamento, há coisas que estão acontecendo”, diz Figuera em entrevista ao EL PAÍS. Chegou aos Estados Unidos há suas semanas, depois de ter ficado abrigado na Colômbia durante quase dois meses após sua fuga da Venezuela. “Estive prestes a me entregar, mas minha esposa, no próprio dia 30, me pediu para não fazer isso.” Entre as coisas que estão acontecendo como consequência do levante estão, segundo o general, as conversações que uma delegação de Maduro e a de Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, mantêm em Barbados. Encontros que levantam todo tipo de suspeitas em Figuera: “Maduro utiliza o diálogo para permanecer no poder, é uma válvula de escape. Tenho minhas dúvidas de que possa eventualmente deixar o poder de forma negociada”, diz Figuera. Perguntado se ainda continua se considerando chavista, o ex-chefe do Sebin afirma se sentir “um homem patriótico”. “Só sei que por menos do que está acontecendo na Venezuela, Chávez fez uma rebelião militar”.
Figuera assumiu a direção do Sebin no fim de outubro do ano passado, depois que o vereador Fernando Albán morreu nas instalações da temida polícia política de Maduro. A oposição e várias organizações afirmam que Albán foi jogado pela janela por agentes, enquanto a versão do chavismo foi de que ele se suicidou. A imediata demissão de seu antecessor e a nomeação de Figuera foram interpretadas como uma maneira de admitir o crime. “Foi jogado”, conclui o ex-chefe dos serviços de inteligência, que também admite que o conteúdo do relatório do Escritório de Direitos Humanos da ONU, dirigido por Michelle Bachelet, se ajusta à realidade: “As torturas são sistemáticas na Venezuela”.
O ex-chefe do Sebin insiste em vários momentos da entrevista que tentou reverter esse comportamento, que responde diretamente, segundo diz, a ordens diretas de Maduro: “Eu disse a ele que se deveria humanizar o Sebin”. No entanto, desde que assumiu o cargo até a tentativa de levante de 30 de abril, em que desempenhou um papel fundamental, Figuera tolerou abusos dos serviços de inteligência, como a prisão do jornalista Luis Carlos Díaz e de Roberto Marrero, que servia como chefe de Gabinete de Guaidó. Figuera reconheceu que a prisão ocorreu depois que Maduro ordenou estreitar o cerco ao presidente da Assembleia Nacional. A primeira opção era prender a mãe de Guaidó, mas ao saber que tinha câncer, Marrero se tornou o alvo. Para conseguir sua prisão, agentes do Sebin invadiram sua casa e plantaram armas, segundo confessou Figuera. “Os dois foram processos arbitrários”, admite.
No fim de março, uma pessoa que participava da conspiração para derrubar Maduro, próxima tanto do chavismo quanto da oposição, especialmente de Leopoldo López, se aproximou de Figuera para convencê-lo a participar de um plano que já estava bastante analisado. O chefe do Sebin concordou porque, diz, estava farto da deriva autoritária. Figuera nega que tenha recebido uma indenização do Governo dos Estados Unidos. A operação consistia em conseguir uma sentença judicial do Tribunal Supremo de Justiça –dirigido por Maikel Moreno–, que propiciasse a dissolução da Assembleia Nacional Constituinte e instasse Maduro a convocar eleições. O ministro da Defesa e chefe do Exército, Vladimir Padrino, teria dado sua aprovação, segundo várias pessoas conhecedoras da operação.
Figuera diz que ficou sabendo que Maduro preparava um banho de sangue para o 1º de maio e convenceu Leopoldo López a acelerar os planos. “Fui eu quem precipitou isso depois de alertar vários dos envolvidos”, em referência a Moreno e Padrino. A “ambição pessoal” do primeiro e o nervosismo atribuído ao segundo pelas consequências que poderia ter um plano frustrado, são as explicações que Figuera dá sobre sua falta de envolvimento no dia-chave.
Treinado em Cuba e na Bielorrússia –“estudei”, ressalta que foi o que fez nos dois países–, Figuera, que antes de dirigir o Sebin fez parte dos serviços de contraespionagem e esteve no círculo próximo de Hugo Chávez, é um dos maiores conhecedores das entranhas do alto comando chavista. Sobre a participação do Governo de Cuba, guarda uma grande cautela e afirma que no anel de segurança de Maduro estão envolvidos duas centenas de cubanos: “Existe um mito por trás de sua presença na Venezuela”.
Figuera tampouco dá maior importância à relação com o Governo de Vladimir Putin e nega que existam paramilitares russos na Venezuela. Sim, admite que a presença da guerrilha colombiana do Exército de Libertação Nacional (ELN) no país é cada vez maior, com o beneplácito de Maduro. “Ninguém no alto comando militar está de acordo com um flerte com a guerrilha”, enfatiza. No caso das dissidências das FARC, o ex-chefe dos serviços de inteligência venezuelanos afirma que tem informações de que o ex-guerrilheiro Jesús Santrich fugiu da Colômbia para a Venezuela para de lá viajar a Cuba.
ELPAÍS