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Países começam a autorizar emissão de passaporte para pessoa não binária

gemma-hicky-photo-credit-nicole-bond-winters-cropped Países começam a autorizar emissão de passaporte para pessoa não binária

Gemma Hickey, 44, precisava operar as mamas. Queria removê-las. “Eu tomava testosterona havia pouco mais de um ano, então, embora meus seios não tivessem sido retirados até aquele momento, minha aparência era masculina”, diz.

Ele é um transexual que naquele ano, 2017, ainda passava pelo processo de mudança de sexo. Por questões pessoais, Gemma nunca quis mudar o nome feminino que ganhou ao nascer e hoje se reconhece como alguém de gênero não binário – que não quer ser enquadrado como exclusivamente homem ou mulher.

Quando tentou embarcar para a província canadense de Ontario, onde faria a cirurgia, ele teve problemas.

“Eu parecia masculino, e minha identificação ainda indicava que eu era uma mulher chamada Gemma. Minha identidade foi questionada antes do embarque e novamente quando o comissário estava verificando os assentos no avião”, conta à reportagem.

“Foi estranho e embaraçoso porque os outros passageiros não conseguiam passar.”

Gemma comprou então uma nova briga em sua longa trajetória como ativista LGBT+.

Por vias legais, pressionou para obter uma documentação que, em vez de “F” (feminino) ou “M” (masculino) no campo de gênero, viesse com a letra “X”, que simboliza a neutralidade.

Começou pela certidão de nascimento. “Não havia espaço no formulário para pessoas não binárias, então rabisquei uma caixinha e escrevi o que eu sou perto das opções ‘masculino’ e ‘feminino’.”

Em 2018, foi um dos primeiros canadenses a conseguir um passaporte “X”. Pelo mundo, só um punhado de países oferece essa alternativa, como Alemanha, Dinamarca e Austrália. Outros, como o Reino Unido, discutem a ideia.

A chegada do democrata Joe Biden à Casa Branca encorajou americanos LGBT+ a lutar para que os Estados Unidos sejam os próximos nesse clube. Por lá, uma pessoa pode mudar o gênero do passaporte, mas apenas de homem para mulher, e vice-versa.

O Brasil ainda está umas casas atrás nesse debate. Em 2020, a Justiça do Rio concedeu à cientista social Aoi Berriel, então com 24 anos, o direito de ser reconhecida como alguém de “sexo não especificado” nos documentos. Aoi usa o pronome feminino para se referir a si, mas não se enxerga como apenas mulher.

Ela conta que o juiz já concordou com a tese de seus advogados, mas o processo ainda não acabou, e por isso ainda não pediu mudanças em sua documentação. Ao menos “já comprovei perante a Justiça brasileira minha legitimidade não binária”, diz.

Mas aeroportos continuam como potenciais campos de batalha para as pessoas que rejeitam rótulos binários de gênero e também para os transgêneros como um todo.

Hoje, qualquer trans brasileiro pode pedir em cartório – sem precisar de autorização judicial – a alteração de nome e gênero, para que se adequem à identidade na qual a pessoa se vê.

O procedimento ficou mais fácil a partir de março de 2018, quando o Supremo Tribunal Federal entendeu ser possível um trans modificar seu registro civil sem obrigatoriamente ter passado por uma cirurgia de mudança de sexo. Também não precisa mais do ok de um juiz para solicitar a alteração: basta ser maior de idade, ir ao cartório e pronto.

Já não binários ainda têm de recorrer às cortes. O caso de Aoi é pioneiro nesse sentido.
Hoje, a pessoa que retificou nome e gênero até consegue tirar um passaporte com a classificação que escolheu para si. O problema é quando ela opta por apenas incluir o nome social no RG.

Nesses casos, não há exclusão do nome de nascimento, também chamado de nome morto por quem se considera renascido com a nova identidade. Ambos constam no documento.

Para os não binários, que não têm uma alternativa de gênero para eles, acaba sendo uma gambiarra. Não existe a possibilidade de fazer como Gemma, que já tirou seu passaporte “X”.

Antes de entrar na Justiça, a carioca Aoi não podia remover o “masculino” de sua documentação. Se tentasse viajar para o exterior, sua aparência mais feminina poderia ser um entrave para o embarque.

“Hoje, o nome social pode constar no RG, no CPF, no título de eleitor, nas carteiras de trabalho e de motorista. Mas no passaporte ainda não”, diz Bruna Andrade, fundadora da startup Bicha da Justiça, que presta assessoria jurídica para a comunidade LGBT+.

A retificação, é verdade, permitiria a requisição de um novo passaporte. Mas o nome social é mais vantajoso para muitos por múltiplos fatores, segundo Andrade. “1) É mais barato; 2) pode ser feito por menores de idade [mediante responsáveis legais], e a retificação é só para maiores de 18; 3) abarca pessoas não binárias; 4) às vezes a pessoa quer só mudar o nome sem muita burocracia, o nome social sai na hora, a retificação é um pouco mais burocrática.”

Segundo a Polícia Federal, responsável por emitir passaportes no Brasil, esse registro tem lastro no documento de identificação apresentado no momento do atendimento. Ou seja, só o nome social não é suficiente. É preciso o pacote completo.

“O requerente [LGBT+] em questão será tratado da mesma forma quando há alteração de nome por casamento, divórcio etc. Será necessário apresentar todos os documentos oficiais em original comprovando o nome e o sexo atual”, afirma a PF em nota.

E isso não é só no Brasil. A falta de uma padronização mundial para as múltiplas identificações LGBT+ se reflete nos aeroportos do mundo todo.

A mãe de uma adolescente de 16 anos foi à Justiça para que a filha embarcasse para os Estados Unidos. Acontece que em sua passagem constava um nome diferente daquele no passaporte americano.

Ela tem dupla cidadania, brasileira e americana, e conseguiu mudar nome e gênero registrados nos documentos de lá. No passaporte americano, é menina. Nos documentos brasileiros, menino.

Os bilhetes aéreos foram adquiridos em dezembro de 2016, e a jovem teve seu gênero validado por autoridades americanas três meses depois. Em decisão inédita, um juiz de Santa Catarina concedeu uma liminar para que ela viajasse sem nenhum embaraço na hora do embarque.

Presidente do Grupo Transrevolução, Indianara Siqueira, 50, diz que o que mais há é constrangimento contra LGBTs+ como ela. Na hora de entrar num país, por exemplo, é comum que agentes de imigração tomem transexuais mulheres por prostitutas e a submetam a longos interrogatórios, isso quando não simplesmente as enviam de volta ao país de origem.

Na hora da revista corporal, então, nem se fala. O passaporte indica um viajante homem, o que não condiz com a realidade que as autoridades encontram. “Com peito já se apavoram, peito e pau no mesmo corpo, acham surreal. Ser trans e travesti numa sociedade cisgênera, que não respeita nossos corpos, é ter problema a todos os momentos, seja para ir ao banheiro, seja ao fazer uma viagem”, afirma.

FOLHAPRESS

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