‘O que eu podia fazer? Cuidar delas!’, diz mãe de meninas unidas pela cabeça
Débora de Freitas Santos, 27, soube que seria mãe aos três meses de gestação. “Eu tentava muito engravidar”, diz ela. “Eu via minhas irmãs engravidando e pensava: ‘Ai, meu Deus!’.” No fim de 2015, começou a ter “uns enjoos”. E muita fome. “Um dia comi uma galinha de cabidela. Chupei até o pescoço.”
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Fez o teste da farmácia. Deu positivo. “Quase morri de alegria!” Já no primeiro ultrassom descobriu que esperava dois bebês. “Adivinha! São gêmeos!”, contou ao marido, Diego de Freitas Santos, 27. “Agora deu!”, reagiu ele. Ela saía, se divertia, andava de moto em Patacas, distrito da cidade cearense de Aquidaz, onde vivem. “Fazia tudo o que uma mulher grávida não pode fazer.”
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Tudo corria bem e a vida era só felicidade. Com cinco meses, fez o segundo ultrassom. Achou um pouco estranho porque o médico não conseguia enxergar uma das crianças. Depois de muito tentar, ele exclamou: “É outra menina!”. E disse que as duas eram normais.
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E assim foi até quase o fim da gestação. Aos oito meses, no entanto, quando fazia mais um exame, a bomba explodiu: não, as meninas não eram normais. Algo muito estranho estava acontecendo, dizia o médico do ultrassom. Ele não conseguia encontrar o rostinho das crianças.
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Os bebês eram “malformados. Muito mesmo”, disse o médico no fim do exame, sem rodeios.
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“Saí chorando para o carro. Chorava. Chorava”, lembra Débora. As lágrimas não secaram por meses e meses.
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Uma ressonância mostrou as meninas unidas pela cabeça. Já o laudo escrito dizia que estavam grudadas pela barriga. “Só Deus sabe o que vai ser”, disse um dos médicos.
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Débora entrou em depressão. “Não comprei berço, não comprei mais nada. Tinha medo que elas nascessem e morressem, ou que fossem muito malformadas. Eu tinha medo de morrer também.”
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O casal começou a ouvir uma sucessão de comentários chocantes. “Vou dizer uma coisa: é melhor que elas nasçam mortas”, chegou a dizer um médico.
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As bebês nasceram, em julho de 2016. E ganharam os nomes de Maria Ysabelle (3,5 kg e 46 cm) e Maria Ysadora (3,7 kg e 47 cm). “Coloquei com Y porque achei diferente. Todo mundo escreve com I”, explica Débora.
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As filhas foram logo transferidas para uma unidade especial e colocadas “numa cabaninha, para evitar curiosos”, lembra a mãe. Ficou uma semana sem ver as duas. Para piorar, funcionários faziam graça. “Uma enfermeira me disse: ‘Mãezinha, elas vão andar assim, ó!’. Encostou a cabeça na de outra colega e começaram a andar grudadas”, lembra.
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Buscava esperança nos médicos, mas era pior. Todos falavam que não havia como separar as meninas. “Mas, doutor, elas não podem viver assim”, disse Débora a um deles. “Podem, sim. A sorte é que não estão frente a frente. Já imaginou passar a vida toda olhando uma para a cara da outra?”, ouviu de volta. E caiu no choro outra vez.
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Quando foi liberada para voltar para casa, caiu na real, diz ela. “As meninas só tinham a mim.” E ao pai.
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A mãe de Débora, Laudenice, ajudou. “Teve um dia que ela me viu chorar tanto que disse: ‘Minha filha, se não der para operar, é coisa de Deus. Nós vamos cuidar das duas do mesmo jeito’.”
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Mandou forrar as paredes e botar piso de cerâmica no quarto das filhas, “fácil de limpar, até com álcool”.
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Foi orientada a evitar visitas para que as meninas, já frágeis, não pegassem gripe, por exemplo, e perdessem peso. “Fui dizer pra família. Para quê? Ficou tudinho de mal comigo. Me julgaram. Mas elas nasceram assim. O que eu podia fazer? Cuidar delas!”
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Mesmo depois que as visitas foram liberadas, o casal evitava as pessoas. Débora desfila uma sucessão de situações constrangedoras. Certa vez uma mulher perguntou: “Cadê as tuas filhas? Morreram?”. Um amigo falou a Diego: “Eu não teria paciência, não”. E Débora: “Você ia jogar no lixo?”. Outro fez piada: “O que foi que tu comeu para elas nascerem assim?”.
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As informações de que dispunham eram precárias. “Fiquei preocupado, por um tempo, de que o cérebro delas estivesse misturado”, diz o pai. “Eu já sabia que eram dois cérebros porque uma faz uma coisa e a outra faz diferente. Se fosse um só, uma dormia, a outra dormia, uma chorava, a outra também.” E não é assim, diz Débora.
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As coisas começaram a clarear quando o neurocirurgião Eduardo Jucá apareceu na vida da família. “Eu vou operar as suas filhas”, disse. Cearense, ele fez medicina em Ribeirão Preto. E decidiu buscar a ajuda dos antigos mestres, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em SP.
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A instituição concordou em examinar o caso, e a família viajou a Ribeirão. O comando foi assumido por Antonio Pazin Filho, diretor do departamento de atenção à saúde do HC, que cuida da estrutura para o atendimento das meninas, e pelo neurocirurgião Hélio Rubens Machado.
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Aos 69 anos e 44 de profissão, doutor Hélio já operou 10 mil pessoas, “no mínimo”. E diz que esta é a situação mais complexa que já enfrentou. Casos de craniópagos, que nascem unidos pela cabeça, são raríssimos: ocorrem numa proporção de 0.6 por milhão de nascimentos. No Brasil, segundo estudos levantados pelo HC de Ribeirão, só uma cirurgia foi divulgada em publicações científicas. Uma das crianças, com microcefalia, já não tinha condições de sobreviver. A outra foi salva.
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Diante do desafio, uma das primeiras providências do professor foi entrar em contato com o neurocirurgião americano James Goodrich, do Montefiore Medical Center de NY. Ele já operou mais de 20 craniópagos, sem ocorrência de óbito.
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O brasileiro viajou para os EUA, e Goodrich veio ao Brasil. Antes de decidirem que sim, as meninas podem ser operadas, elas passaram por uma série de exames.
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Havia o risco de que algum problema grave fosse encontrado, como pressão alta, alteração renal ou hormonal. Mas elas são saudáveis. Só estavam um pouco desnutridas. É que os pais, com medo de que engasgassem, só davam mamadeira de Mucilon com leite e mamão batido às filhas.
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O crânio e o cérebro das duas foram reconstruídos de forma tridimensional, e um molde de acrílico foi feito nos EUA com o detalhe “de cada voltinha do cérebro, cada veia e artéria, exatamente como são”, diz o doutor Hélio. Havia temor de que fosse impossível separar a circulação. Mas isso não ocorre.
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E o martelo foi batido: depois de um ano de exaustivo planejamento que envolveu mais de 30 pessoas, as meninas serão operadas em 17 de fevereiro no HC Criança, a unidade infantil do hospital.
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Serão quatro cirurgias em datas diversas. Em cada uma delas, uma parte do crânio será aberta. Veias e partes sobrepostas de uma área dos cérebros serão separadas. Tudo será fechado. Cada procedimento dura quatro horas.
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Depois de quatro meses de recuperação, será feita a segunda cirurgia, e assim sucessivamente. Só depois de um ano, se tudo correr bem, as meninas serão definitivamente afastadas -na quarta, última e mais complexa intervenção.
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“Podemos ter que virar a noite operando”, diz o doutor Hélio. “Vai ser a última separação das veias, do cérebro, do osso. Vamos reconstruir a cabeça de cada uma delas -o crânio e a pele. Deixaremos por último o momento mais grave.” O procedimento mobilizará equipes de neurocirurgia, cirurgia plástica, anestesistas, neurorradiologistas, pediatras e intensivistas. Tudo em dobro, pois serão duas na mesa de operação.
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O valor de uma cirurgia como essa é calculado em US$ 2,5 milhões na rede privada dos EUA. Na rede pública, como é o caso das meninas, o custo é bem menor. As despesas estão sendo rateadas pela Secretaria de Saúde do Ceará, pela Faculdade de Medicina e pelo HC de Ribeirão.
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Débora e Diego esperam ansiosos em Patacas pelo grande dia. Ele está desempregado. Buscaram o INSS -que concedeu apenas um benefício, como se as gêmeas fossem uma só pessoa.
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Em casa, a rotina é puxada. “Num calor de 35°, o normal é dar quatro banhos nas crianças. E às vezes não tem ninguém pra me ajudar”, diz a mãe. As meninas começaram a andar. Para isso, uma delas é colocada em pé enquanto os pais seguram a outra de ponta cabeça.
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Outra dificuldade é o sono das meninas. Quando Ysabelle dorme, Ysadora fica quietinha. Mas, quando é o contrário, Ysabelle fica se mexendo. “Aí a irmã acorda e começa a chorar”, diz Débora.