Com um raminho molhado nas mãos, dona Carminha faz uma prece poderosa. “Protege de olhado, de quebrante, de inveja e ambição”, diz. “Se botaram pela frente, tiro com o Senhor São Vicente. Se botaram por detrás, tiro com Senhor São Brás. Se botaram de lado, tiro com Senhor São João. Em nome de Deus Pai”, e boceja. “Tem olhado viu, minha filha”, avisa.
Rezadeira desde os sete anos, Carminha começou a exercer sua vocação logo cedo. Ainda menina, trocava as brincadeiras, para sentar à beira de um açude, no interior de Pernambuco, e rezar pelos passarinhos que caíam com asa quebrada. Tomou gosto pelas preces ritmadas e logo mais tarde, ficou com medo até mesmo de casar. Não queria que nada lhe atrapalhasse de viver para aquilo que nasceu: rezar, benzer e pedir a Deus.
“Pra mim não tem vexame, não tem negócio de casa. Eu faço minhas coisas tudo bem direitinho e cuido em almoço. Aqui em casa ninguém fica com fome. Eu criei meus cinco filhos sem consolo (chupeta). Vendia carvão, vendia gás, criava porco e galinha e hoje em dia é tudo na paz de Deus. Mas sempre foi rezando e pedindo a Deus”, conta.
Quem chega à casa de Carminha se depara com uma fila de pessoas ocupando, em silêncio, os sofás da sala. Às vezes ela não tem hora para comer. Abre as portas de sua casa, no bairro de Santa Rosa, bem cedo, às 7h.
Logo as pessoas vão chegando. Mãe com bebê doente, homem que brigou com a mulher em casa, soldado do Exército, atleta, gente com problema nos negócios, mas no geral, pessoas em busca de paz.
“Eu rezo todo mundo. Não tem aborrecimento. Jesus vai me dando força e eu vou vencendo. Quando eu era pequena pegava duas laranjas para arear os pés na beira do açude e ia rezar por todo mundo. Ainda hoje sou do mesmo jeito.
Eu acho que eu sempre vou ser feliz fazendo isso. Tudo que eu já pedi, aconteceu tudo. Eu rezo pela pessoa, só pra vir a paz e a alegria. E é tão bom, tão bom”, afirma.
Carminha se comprometeu com a fé. Durante a semana recebe as pessoas, e quando não faz isso, não se sente bem. “Rezo com fome, porque Jesus me dá força e eu acho bom”. O sagrado estampa e decora o pequeno santuário instalado no meio da casa. É lá, arrodeada de santos, que ela olha nos olhos das pessoas, pergunta seu nome e começa. Para cada problema, uma oração.
“É bom rezar o menino antes de batizar, porque se batizar e o menino estiver com olhado, o olhado desce pros ossos. Aí fica aqueles meninos bem entroncadinhos”, ensina. É o quebrante, um tipo de energia ruim que adoece o corpo e só a ciência espirituosa dessas mulheres de fé, como dona Carminha, explica.
Pela fé
São curadores que aplicam a sabedoria ancestral, em chás de ervas, banhos e benzimentos, com rezas e cantos, e com essas práticas conseguem minorar muitos dos males que atingem os que as consultam.
“Na verdade, o que as pessoas buscam é a paz”
Nem sempre o acesso à saúde foi fácil. Especialmente em zonas rurais de cidades do interior, era muito comum que as pessoas se apegassem à fé das benzedeiras para superar doenças. De acordo com o pároco da igreja de Nossa Senhora do Carmo, de Puxinanã, padre Haroldo Andrade Silva, a fé dessas mulheres era a única coisa que muitas pessoas tinham.
“É um ofício antigo. Quando a medicina era escassa e não se tinha um médico que assistisse na zona rural, este era o único recurso.
Elas rezam com um ramo verde. Rezam orações católicas. Em varias paróquias por onde passei muitas delas têm uma força muito grande”, conta.
Segundo o padre, é um trabalho humilde e desprendido. Ele explica que algumas tem o poder de cura tão forte, que tomam para si as enfermidades de quem chega pedindo apenas uma prece.
“Minha mãe também nos levava. Elas faziam várias rezas. Para espinhela caída, peito aberto e mau olhado. Eu nasci numa família que cultivou a crença na reza.
Quando uma cobra atacava alguém, não havia antidoto algum tempo atrás, então se rezava para a pessoa ser salva. Mas as rezadeiras rezavam também pelos animais. É uma experiência de fé muito grande. Algumas delas até dizem que quando rezam, sentem que a enfermidade dos outros chegam em si. São experiências interessantes, místicas, e são válidas. Às vezes a pessoa está com depressão, sem ânimo, perdendo a vontade de viver, e a única maneira que encontra é conversando com a benzedeira. E aí elas se sentem curadas”, acredita.
“A rezadeira é meu pronto socorro”
No santuário de dona Carminha entra o radialista profissional Francisco de Assis Gomes. Uma vez por semana ele está lá. Já até se tornou amigo da benzedeira. “Venho sempre que posso me aliviar das tensões do dia a dia. Dona Carminha já me conhece”, afirma.
Na sala de espera de dona Carminha está também a professora Maria Almeida. Tentou conversar algumas palavras com a reportagem, mas não conseguiu – está quase sem voz. Recebeu uma reza e voltou. Aos poucos a voz também veio. E ela explica. “O corpo vai somando as energias ruins”. Só uma prece poderosa salva. Maria é cardecista e médium. Para ela, o plano espiritual é tão forte, que ela sente que seu corpo é como uma esponja: por onde passa “limpa”.
“Todos nós nascemos médiuns. Uns com um grau, outros com menos. Mas todos somos medianeiros. O plano espiritual nos vê, mas nem todos vemos o plano espiritual. Nem todos sentem. Eu tenho uma colega que do mesmo jeito que ela vê o mundo físico ela vê o mundo espiritual. Eu sou cardecista praticante. Como eu estava precisando de ajuda para ajudar alguém, corri aqui em dona Carminha, meu pronto socorro. Gracas a Deus ela mora perto de mim. Depois que a descobri, quero vir sempre”, diz a professora.
Neta de rezadeira e filha de católicos, a espiritualidade e religiosidade sempre foi tradição na família. Mas o que Maria sente parece tão perturbador, que não ir a uma rezadeira pode fazê-la parar no hospital.
“A rezadeira tem a necessidade de fazer isso que ela faz. Assim como eu tenho necessidade de vir até ela. Porque se eu não vier, eu vou parar no hospital. Eu adoeço. Eu sou tipo uma esponja: onde passo vou fazendo uma limpeza. Se eu não me cuidar, eu fico com febre e tudo. Sugo mesmo a energia de onde estiver”, lembra.
E continua. “Até agora (16h) eu não almocei e não estou com fome, porque estou mediunizada desde de manhã. A gente filtra a energia do ambiente. Às vezes é espiritual, às vezes é miasma, um tipo de energia que fica impregnado por onde a gente passa, porque a gente cria a ambiência onde a gente está. Às vezes quando entro em um ambiente onde as pessoas são negativas, eu adoeço. Ai tenho que procurar socorro, se não fico de cama. Em 2001, cheguei a ficar hospitalizada, como se eu tivesse com catapora e teve relação com isso. Hoje vim em dona Carminha, por necessidade, porque eu estou sentindo”, avalia.
Tratamento
Pelo efeito da fé daqueles que aplicam conhecimentos de cura que vêm de povos tão distintos, as benzedeiras, têm suprido a falta de atendimento médico em localidades remotas.
Que mal faz uma oração?
Dona Rosa vai acompanhada do filho até dona Carminha. Eles preferem não se identificar, mas não se negam a contar que acreditam muita na oração daquela mulher. “É uma tradição. É de família. Eu sou do Cariri, da cidade de Prata, de uma terra que não tinha médico.
As rezadeiras faziam o trabalho pela fé, porque a gente não tinha acesso a médicos. Eu fui criada vendo minha mãe levar a gente pra benzedeira. A primeira vez levei meu filho, ainda criança, porque ele ficava dormindo muito, ai diziam que estava com olhado. Ela rezava e a criança se sentia mais animada. É a fé. Eu sou católica e acredito que reza nunca é ruim. Se não fará bem, que mal fará?”, argumenta.
Para ela, receber a reza é o melhor dos remédios. Fortalece corpo e alma. “Eu acredito que faz o bem. Eu entrego nas mãos de Deus e pronto. Quando estou me sentindo desanimada, desmotivada e com muito sono eu venho. Quando eu sinto que nada vale a pena, ou que a vida é sem sentido, ai eu venho e me sinto renovada. Dona Carminha sempre diz que quando a gente se sente mal, é porque está com um olhado que suga nossas energias. Estou vindo três semanas seguidas. E a oração cura. A gente tem que crer em alguma coisa não é? Porque a vida fica muito difícil, se a gente não tiver em quê se apegar.
Esse plano tem que ter um sentido. Não é só a gente vir e acabar. Agora que meus filhos cresceram, eles também entendem que é algo bom”, explana.
O que trata
A cultura popular identifica como sendo de trato das benzedeiras – empacho, espinhela caída, quebranto, bucho virado, e sensações físicas muito incômodas.