Em discurso de união, Biden se coloca como luz em ‘época de escuridão’
Joe Biden fez nesta quinta-feira (20) o discurso mais importante de sua carreira política até agora. Na última noite da convenção democrata, o ex-vice de Barack Obama aceitou formalmente a nomeação como candidato do partido à Casa Branca em uma fala forte, em que pediu união dos americanos para vencer Donald Trump e se colocou como “um aliado da luz” em tempos de escuridão nos EUA.
Biden citou Ella Baker, ativista dos movimentos pelos direitos civis, ao dizer que, quando se dá a luz ao povo, ele acha o caminho. “Dê ao povo luz”, ecoou antes de fazer seu primeiro ataque a Trump.
“O atual presidente cobriu os EUA de escuridão por muito tempo, muita raiva, muito medo, muita divisão”, afirmou o agora candidato democrata.
“Se você confiar a Presidência a mim, vou trabalhar com nosso melhor e não com nosso pior. Serei um aliado da luz, não da escuridão. É hora de nós, nós, o povo, ficarmos juntos e não cometermos erros. Juntos, podemos nos recuperar dessa temporada de escuridão nos EUA”, completou.
O ex-vice de Obama cristalizou a ideia de que pode unir o país mesmo em tempos de polarização e insistiu na tese de que sua liderança —ancorada nos valores e princípios do americano comum— é a única capaz de tirar os EUA de uma crise histórica.
“Vou ser um presidente americano, vou trabalhar por aqueles que não votaram em mim de maneira tão forte como por aqueles que votaram. Esse é o papel do presidente, representar todos e não só sua base ou partido. Não é um momento partidário, mas um momento de esperança no futuro.”
O foco da crítica de Biden ao atual presidente foi sobre a má condução do republicano diante da pandemia que já matou milhares de pessoas no país.
Ele pediu que os americanos “julguem o presidente pelos fatos” antes de enumerar os 5 milhões de contaminados e os mais de 170 mil mortos por Covid-19 no país, além dos 50 milhões de desempregados.
“Esta é uma eleição de mudança de vida que determinará o futuro da América por muito tempo”, disse Biden. “O personagem está na cédula. A compaixão está na cédula. Decência, ciência, democracia. Está tudo na cédula. E a escolha não poderia ser mais clara.”
Biden disse que Trump não tem responsabilidade e se recusa a liderar.
Em um dos momentos mais duros, o ex-vice de Obama atacou: “Nosso atual presidente falhou em seu dever mais básico para com esta nação. Ele falhou em nos proteger. Ele falhou em proteger a América. E, meus companheiros americanos, isso é imperdoável.”
Seguindo a estratégia de apontar para um futuro mais seguro, caso seja eleito, Biden disse que o primeiro passo de seu governo será controlar a pandemia nos EUA, o que o atual presidente não conseguiu fazer.
“Essa tragédia não era para ser tão grande”, afirmou Biden.
“Depois de tanto tempo, o presidente ainda não tem um plano, eu tenho. Se eu for presidente, no dia 1 vou implementar uma estratégia nacional de testes rápidos, ordem nacional para usar máscaras, o que a gente tinha de ter feito desde o começo.”
O roteiro não surpreendeu. Biden tinha a missão de resumir as quatro noites da convenção democrata e ir além das críticas a Trump, apontando para uma mensagem de esperança aos eleitores que desejam uma nova realidade para o país.
O objetivo era mostrar que os EUA são uma nação resiliente, assim como Biden, e que é possível trabalhar em conjunto, mesmo em tempos de polarização, para melhorar a vida das pessoas.
Líder em todas as pesquisas nacionais e na maior parte dos estados-chave, Biden foi aconselhado por assessores a não testar fórmulas novas em um momento tão importante.
De Delaware, estado onde vive desde a década de 1950, o candidato sabia que precisava descontruir a imagem de Trump e, mais do que isso, conquistar a empatia dos eleitores ao se apresentar como um cidadão comum, que teve a vida marcada por tragédias pessoais, mas que conseguiu se reerguer com resiliência.
Biden perdeu a primeira mulher e a filha de um ano em um acidente de carro em 1972 e, quatro décadas depois, um filho, vítima de câncer no cérebro.
E foi isso que ele fez. “Eu sei como é perder alguém que você ama. Eu conheço aquele buraco negro profundo que se abre em seu peito. Que você sente que todo o seu ser está sendo sugado por ele. Eu sei como a vida pode ser mesquinha, cruel e injusta às vezes”, disse o candidato em um dos momentos mais emotivos de sua fala de quase meia hora. “Mas descobri que a melhor maneira de superar a dor, a perda e a tristeza é encontrar um propósito.”
Aos 77 anos, o democrata usa a superação pessoal para convencer que pode reconstruir o país em meio à pandemia que já matou mais de 173 mil pessoas nos EUA.
Os ataques que Biden fez ao atual presidente, porém, eram sempre permeados por sua história de vida, que, na visão dos democratas, credencia o ex-vice à Casa Branca.
Antes do discurso de Biden, um vídeo sobre sua trajetória foi exibido, com trechos de sua atuação como vice de Obama. Após a fala, o candidato recebeu um beijo e um abraço da mulher Jill, no palco, e os dois saíram do centro de eventos para ver os fogos de artifício na rua, de máscara e respeitando o distanciamento social.
O tom emocional apareceu diversas vezes na convenção desde sua abertura, na segunda (17), e nesta quinta não foi diferente. Houve um tributo a Beau, o filho de Biden que morreu em 2015 por causa de um câncer, e seus outros dois filhos deram depoimentos sobre o pai —um deles, Hunter, foi peça central na investigação que resultou em um processo de impeachment contra Trump, enterrado no Senado em janeiro.
Hunter trabalhava em uma empresa de gás na Ucrânia, e o republicano pediu ao presidente daquele país que investigasse os negócios do filho de seu adversário político.
Foram também escalados para aparecer na última noite do evento, batizada de “Promessa da América”, ex-adversários de Biden que disputaram com ele a nomeação democrata. Em um quadro único, em que conversavam virtualmente entre si, estavam os moderados Pete Buttigieg e Amy Klobuchar e os progressistas Bernie Sanders, Cory Booker e Elizabeth Warren, além de Beto O’Rourke e Andrew Yang, que foram seguidos por um discurso do bilionário e ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg —outro concorrente nas primárias do partido.
Desde o início da convenção —pela primeira vez realizada de maneira virtual, em razão da pandemia—, os democratas tentam mostrar que basta ser anti-Trump para apoiar Biden.
O leque diverso de oradores, que foi desde progressistas até figurões republicanos que estão cansados do atual presidente, argumenta que Trump divide o país e não tem condição de governar, enquanto Biden tem experiência para unificar os americanos de maneira suprapartidária.
Na segunda, falaram Sanders, ícone da ala mais à esquerda dos democratas, e o republicano John Kasich, ex-governador de Ohio que concorreu à nomeação de seu partido à Presidência em 2016, colocando-se como uma liderança anti-Trump.
No meio, a grande estrela daquela noite, a ex-primeira-dama Michelle Obama, foi responsável pelo discurso mais forte contra Trump até então.
Na quarta, a noite mais esperada do evento, seu marido, o ex-presidente Barack Obama, desferiu seu discurso público mais agressivo contra Trump, dizendo que o atual presidente nunca levou o trabalho a sério e trata o cargo como um “reality show.”
Além de atacar o republicano, Obama tinha o desafio de angariar apoio de eleitores de todos os espectros políticos e sociais em torno do seu ex-vice —e falou inclusive a indecisos.
Primeiro presidente negro da história americana, Obama conseguiu vencer as eleições de 2008 e 2012 com um arco de apoio abrangente, que alcançou de jovens e negros a moderados e independentes.
Neste ano, Biden tenta reconquistar o primeiro grupo que, em 2016, não se mobilizou a votar em Hillary Clinton. Isso sem perder de vista parte do segundo que, dizendo-se cansado da política tradicional, optou por Trump há quatro anos.
O esforço dos democratas também girou em torno da importância do voto —que não é obrigatório nos EUA— para tentar não repetir o trauma (e a derrota) de 2016, quando o comparecimento dos eleitores do partido às urnas foi mais baixo que nas eleições de Obama, por exemplo.
A diversidade que a convenção democrata imprimiu durante a semana, com discursos de mulheres, negros, latinos, entre outros, pode incomodar os mais conservadores.
Biden tenta balancear o jogo com seu estilo moderado —ele é um homem branco da velha guarda democrata.
Sua companheira de chapa, a senadora Kamala Harris, por sua vez, fez história ao ser nomeada a primeira mulher negra a concorrer à vice-presidente por um grande partido nos EUA.
Kamala (pronuncia-se Kâmala) fez um discurso forte contra Trump e o racismo na quarta-feira, tocando em questões caras para a sociedade americana que vive um acerto de contas racial.
Segundo integrantes da campanha democrata, a partir de agora Biden e Kamala vão participar de eventos em estados-chaves nas próximas semanas, seguindo as orientações dos especialistas em saúde sobre os protocolos em meio à pandemia.
FOLHA