A máquina de fazer dinheiro do Estado Islâmico
O Estado Islâmico (EI) é talvez a organização terrorista mais bem financiada de sempre, nas palavras do actual vice-director da CIA, David Cohen. Ao contrário da Al-Qaeda e outros grupos terroristas, que dependem fortemente de dadores simpatizantes das suas causas, o EI controla um território na Síria e no Iraque onde vivem pelo menos oito milhões de pessoas e que governa como se fosse um Estado. Impõe a quem lá vive os mais variados impostos, com inspiração no Corão, e explora recursos naturais, como o petróleo.
Uma ressalva: não há muitos dados concretos, nem uma pista electrónica das contas e transacções do EI que permita conhecer com pormenor as finanças do califado autodeclarado pelo líder Abu Bakr al Baghdadi em Junho de 2014, depois de o grupo ter conquistado Mossul, a segunda maior cidade iraquiana. Mas estimativas apresentadas ao Congresso dos Estados Unidos no final desse ano pela Rand Corporation, apontam para que o Estado Islâmico ganhe entre 1 e 3 milhões de dólares por dia provenientes de várias fontes. Fez um longo caminho desde 2008, quando apenas conseguia ganhar um milhão de dólares num mês.
Os rendimentos anuais do EI, neste momento, rondam os 2700 milhões de euros, diz o Le Monde, que faz algumas comparações que ilustram bem as capacidades financeiras desta organização: estima-se que o orçamento dos talibans, no Afeganistão, oscile entre 49,7 milhões e 300 milhões de euros, e o que Hezbollah libanês entre 150 e 341 milhões de euros.
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O acesso aos poços de petróleo da Síria e do Iraque é, certamente, uma das principais fontes de rendimento do EI. Mas não é a única e, neste momento, nem sequer será a principal. A diversificação é uma das chaves do seu sucesso.
Petróleo
A dúvida é: até que ponto os bombardeamentos da coligação internacional estão a impedir a exploração petrolífera pelo Estado Islâmico na Síria e no Iraque? Em Outubro, uma investigação do Financial Times concluía que os jihadistas estavam a ganhar cerca de 1,5 milhões de dólares diários com o petróleo, mas estes números foram contestados.
No entanto, o EI terá a capacidade de produzir 44 mil barris de crude por dia na Síria e 4000 no Iraque, que depois é vendido na Turquia, a intermediários, a preços muito reduzidos – por vezes a 20 dólares. É apenas uma fracção da capacidade de produção total do Iraque (três milhões de baris por dia), mas quase 10% da da Síria, que antes da guerra civil começar a todo fôlego, diz aNewsweek, rondava 385 mil barris diários.
Em alguns casos, o petróleo é refinado ainda na Siría, com sistemas transportáveis, baratos e simples de operar. Este combustível é usado localmente e é ainda mais fácil canalizá-lo para o mercado negro na Turquia, misturando-o com outro combustível.
Em teoria, quando abastece o seu carro, parte do gasóleo ou gasolina pode ter vindo daquela que o EI extrai na Síria ou no Iraque. Na verdade, as próprias tropas do Presidente Bashar al-Assa, com quem combate o EI, devem usá-lo, tal como os curdos, que lhes têm sido os mais eficazes a dar-lhes luta.
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O tráfico é feito através de camiões cisterna para a Turquia – muito provavelmente conduzidos por civis, que não são propriamente cúmplices dos jihadistas, apenas usam rotas que têm décadas, utilizadas durante os anos das sanções impostas ao regime de Saddam Hussein, no Iraque. Os guardas de fronteira recebiam baksheesh (pagamento às escondidas, suborno) para deixar passar os camiões com contrabandos variados, entre os quais petróleo, que era vendido a intermediários na Turquia, que se encarregavam de o colocar no mercado normal.
O Estado Islâmico aproveita-se dessas mesmas redes e fará pelo menos 500 milhões de dólares de lucro anuais – o petróleo representará cerca de um terço dos seus actuais rendimentos anuais.
Outros importantes recursos naturais que estão no território do EI são as minas de fosfatos de Khnaifess, localizadas à beira da estrada entre Damasco e Palmira, a cidade património da Humanidade da qual os jihadistas se apropriaram. A Síria tem uma das maiores reservas de fosfatos do mundo – em tempos de paz, as minas rendiam cerca de 60 milhões de dólares anuais. Não é claro, no entanto, se o grupo terá capacidade para explorar as minas.
Sob seu controlo estão também cinco fábricas de cimento – que poderiam render 583 milhões de dólares anuais, diz a Reuters – e várias instalações de extracção de enxofre.
Um dia antes dos atentados de Paris, os EUA tinham anunciado uma intensificação dos ataques contra os locais de produção petrolífera nas mãos do EI, com o objectivo de os desactivar durante pelo menos seis meses – até agora, os bombardeamentos não tinham consequências de maior, dentro de uma semana, no máximo, voltavam a estar funcionais. Havia a preocupação de manter as estruturas operacionais para poderem ser aproveitadas pela Síria, num futuro em que houvesse paz.
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Durante um ano, o EI lutou pelo controlo da refinaria de Baiji, a maior do Iraque, mas em Outubro foi obrigada a recuar.
“Os argumentos para não atacar a infra-estrutura petrolífera nas mãos do EI são bem conhecidos – os custos da reconstrução pós-conflito e a destruição dos meios de ganhar a vida daqueles que dependem desta indústria”, escreveu no New York Times Tom Keating, director do Centro de Estudos de Crime Financeiro e Estudos de Segurança no Royal United Services Institute (Reino Unido). “Mas o preço de atrasar os bombardeamentos vê-se em Beirute, no Egipto e Paris”, onde houve atentados do EI.
Quanto ao bombardeamento das longas filas de camiões cisternas que muitas vezes se vêm rumo à Turquia, os militares contorcem-se de dúvidas: podem ser apenas civis a conduzi-los, que tentam ganhar a vida num ambiente de guerra. “Os apelos para que se bombardeiem alvos petrolíferos exageram a dependência do Estado Islâmico dos rendimentos do petróleo”, afirma, no mesmo jornal, Hassan Hassan, analista da Chatham House e co-autor do livroISIS: por dentro do Estado do terror (Leya).
“Os bombardeamentos, em especial no Leste da Síria, estão a pôr em causa as formas de vida de muitas pessoas que dependiam do comércio, transporte e outras actividades relacionadas com o petróleo, antes do EI controlar as áreas em que vivem”, sublinha. O mercado negro foi a forma de continuarem a ter meios de sobrevivência, depois do colapso do Governo de Bashar al Assad. “Algumas famílias estão a enviar os seus filhos para as fileiras do EI, como a única forma de obter um rendimento mensal”, frisa.
Taxas e extorsão
Ter o controlo efectivo de um território é a originalidade do Estado Islâmico. É o seu ponto forte, pois pode impor as mais variadas taxas às pessoas que lá vivem, e apropriar-se dos recursos produzidos. A extorsão e a imposição de taxas com inspiração corânica podem render 600 milhões de dólares anuais (565 milhões de euros) ao EI e deve ser a sua principal fonte de rendimento, dizem vários analistas. Só na cidade iraquiana de Mossul, deverá obter oito milhões de dólares em impostos por mês, diz um relatório da Thomson Reuters.
No entanto, pode também ser o seu ponto fraco, pois tem de administrar o território, assegurar os serviços mínimos a quem lá vive. Isto ao mesmo tempo que mantêm uma guerra sangrenta contra Assad e seus aliados, contra outros grupos rebeldes e são bombardeados pela coligação internacional liderada pelos EUA e agora também pela Rússia.
Como é a vida no Estado Islâmico?
Os jihadistas “impõem um contrato social em que os muçulmanos consentem em pagar taxas e contribuições de caridade obrigatórias em troca de protecção e benefícios, enquanto súbditos do califado”, explica num artigo dothink tank Brookings Institution Mara Revkin, que está a fazer um doutoramento sobre os processos de governação de grupos rebeldes como o EI.
O sistema de taxas do EI baseia-se numa leitura selectiva de interpretações medievais do Corão, diz Mara Revkin, para impor três grandes tipos de taxas: o Zakat é a contribuição obrigatória de uma percentagem dos ganhos totais dos muçulmanos – tradicionalmente é de 2,5%, mas o EI aumentou-a para 5%. Para além dos salários, pode ser aplicada a produtos agrícolas, por exemplo – e o EI deitou mão a grande parte dos territórios agrícolas da Síria e do Iraque, onde é produzida grande parte do trigo e da cevada daqueles países. Mesmo vendendo estes cereais no mercado negro a 50% do preço normal, a Reuters estima que o EI obtenha cerca de 200 milhões de dólares anuais
Fay é o tributo pago em dinheiro ou terras pelos não-crentes – e há relatos de valores diferentes impostos a cristãos e outras minorias. A Ghanima refere-se aos bens móveis retirados pela força aos não muçulmanos numa campanha militar, como escravos e armas. Um quinto (khums) deve ser destinado para o erário público, e os restantes 80% podem ser distribuídos entre os combatentes, explica a investigadora.
Mas todas estas taxas podem multiplicar-se, tornando-se verdadeiras extorsões: é preciso pagar uma taxa para usar os serviços de telecomunicações, para tirar dinheiro do banco, para comprar seja o que for. Os camiões e outros veículos que passem pelas estradas do Norte do Iraque têm de pagar 800 dólares de portagem, diz ainda a Reuters.
Dentro dos esquemas de extorsão cabem ainda os raptos para obter resgates. Os EUA e o Reino Unido recusam-se a pagar por cidadãos seus que tenham sido raptados, mas outros países terão pago alguns milhões de dólares ou euros – em 2014, o EI poderá ter recebido cerca de 45 milhões de dólares, estima um relatório do Congresso norte-americano. E mesmo cidadãos locais serão raptados frequentemente – embora nestes casos os resgates pedidos sejam muito menores, com valores que podem rondar os 500 dólares.
A insatisfação com o sistema de taxas e extorsão do EI estará a crescer, pelo que se conclui dos relatos que chegam ao Ocidente. Talvez pela falta de perspectivas para a população sob o seu jugo, ou por causa da evolução do sistema de controlo do território posto em prática pelos jihadistas, explicado por Mara Revkin.
Quando o EI se apropria de um novo território, as suas prioridades são restaurar os serviços básicos, como a água e a electricidade. Em alguns locais, pôs a funcionar as panificações, para fornecer pão grátis ou a preços subsidiados. Os produtos que entram no território são adquiridos pelo EI e depois vendidos à população – com taxas, que se foram agravando. Começam depois uma campanha de repressão do crime vulgar – ladrões, traficantes, violadores, assassinos comuns.
Só então é que o EI começa a regular a moral pública e as práticas religiosas. Primeiro, as pessoas começam por ser encorajas a deixar de beber e fumar de forma educada. Se não o fazem a bem, começam a ser sujeitas a violência, e são introduzidos castigos corporais para quem for apanhado a vender ou a consumir cigarros ou álcool. O medievalismo do EI e a sociedade em dois andares – guerrilheiros e o resto da população – afirma-se com o avançar do tempo.
Tráfico de antiguidades
Esta será a segunda maior fonte de rendimentos do Estado Islâmico. Vários museus ficaram sob o seu controlo, e vários locais arqueológicos também. Algumas relíquias são destruídas para efeitos de propaganda, como está a acontecer na cidade de Palmira. Mas as peças facilmente transportáveis são traficadas para o estrangeiro, sobretudo para a Europa, onde há compradores para peças que, a não ser ilegalmente, nunca seriam transaccionadas.
Quem quiser escavar – ou roubar o que encontrar – nos sítios arqueológicos sírios paga uma taxa: 20% sobre o valor do que encontrar em Alepo, depois de efectuada a transacção com receptadores autorizados pelo EI, 50% em Raqqa. Um relatório do Congresso dos EUA estima em 100 milhões por ano os rendimentos do EI com a venda ilícita de objectos arqueológicos.
A questão é descobrir o percurso que estas peças fazem, depois de saírem da Síria ou do Iraque, através da Turquia ou de Beirute, e de terem sido branqueadas com documentação falsa sobre a sua origem. Começam a surgir algumas denúncias de que estarão a ser vendidos em leilões na Europa, ou em lojas sem escrúpulos em relação a peças vindas de regiões de conflito. Por exemplo, o especialista em Médio Oriente também do University College de Londres Mark Altaweel encontrou numa loja da capital britânica objectos que “muito provavelmente vêm do Iraque e da Síria”, contou ao Guardian.
Um fragmento de vidro rudimentar, uma estatueta minúscula, um baixo-relevo em osso – peças com características tão distintivas que só podem ter vindo de uma zona específica, na área controlada agora pelo Estado Islâmico, afirmou. “O facto de estarem à venda tão abertamente em Londres diz-nos a escala deste tráfico – estamos a ver apenas a ponta final”, comentou Altaweel.