O governo de Cuba anunciou nesta quarta-feira (14) o fim de sua participação do programa Mais Médicos no Brasil.
Em nota divulgada pelo Ministério da Saúde do país caribenho, a decisão é atribuída a questionamentos feitos pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), à qualificação dos médicos cubanos e ao seu projeto de modificar o acordo, exigindo revalidação de diplomas no Brasil e contratação individual.
“Condicionamos a continuidade do programa Mais Médicos à aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinados à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou”, afirmou Bolsonaro, por meio de sua conta no Twitter, após a decisão anunciada pelo governo cubano.
“Além de explorar seus cidadãos ao não pagar integralmente os salários dos profissionais, a ditadura cubana demonstra grande irresponsabilidade ao desconsiderar os impactos negativos na vida e na saúde dos brasileiros e na integridade dos cubanos”, acrescentou, mais tarde, o presidente eleito.
Diferentemente do que acontece com os médicos brasileiros e de outras nacionalidades, os cubanos do Mais Médicos recebem apenas parte do valor da bolsa paga pelo governo do Brasil. Isso porque, no caso de Cuba, o acordo que permite a vinda dos profissionais é firmado com a Opas (Organização Panamericana de Saúde), e não individualmente com cada médico.
Pelo contrato, o governo brasileiro paga à Opas o valor integral do salário, que, por sua vez, repassa a quantia ao governo cubano. Havana paga uma parte aos médicos (cerca de um quarto), e retém o restante.
Um dos programas mais conhecidos na saúde, o Mais Médicos foi criado em 2013, na gestão da então presidente Dilma Rousseff (PT), para ampliar o número desses profissionais no interior do país.
Ainda no lançamento, o programa gerou atrito com entidades médicas devido à dispensa de revalidação de diploma para médicos estrangeiros, contratados como “intercambistas”.
No ano passado, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que a ausência de revalidação de diploma era constitucional.
Atualmente, o programa soma 18.240 vagas. Destas, 8.332 são ocupadas por médicos cubanos, selecionados para vir ao Brasil por meio do convênio com a Opas. Outras 4.721 são ocupadas por brasileiros formados no Brasil e 3.430 por intercambistas (médicos brasileiros formados no exterior ou de outras nacionalidades).
Em nota divulgada na tarde de quarta, o Ministério da Saúde informa que está adotando todas as medidas necessárias “para garantir a assistência dos brasileiros atendidos pelas equipes da Saúde da Família que contam com profissionais de Cuba”.
À Folha o ministro da Saúde, Gilberto Occhi, disse que a pasta planeja lançar um edital já nos próximos dias para repor as vagas que devem ser abertas com a saída dos médicos.
“Vamos trabalhar para que os brasileiros assumam. Teremos um edital imediatamente”, afirmou.
A decisão do governo cubano por encerrar a parceria foi comunicada ao ministério nesta quarta em reunião com representante da Opas no Brasil, Joaquín Molina. Nos bastidores, no entanto, membros da Opas já se preparavam para a medida devido às frequentes declarações de Bolsonaro sobre o programa, segundo a Folha apurou.
Ainda não há informações de como deve ocorrer a saída dos profissionais. A previsão, porém, é que os médicos deixem o país até no máximo 31 de dezembro —antes, assim, da posse de Bolsonaro.
Em geral, os médicos cubanos ficam em municípios menores e mais distantes das capitais, onde há menos interesse de brasileiros em ocupar as vagas –pelas regras do programa, médicos brasileiros têm prioridade na seleção, seguido de brasileiros formados no exterior, médicos intercambistas (outros estrangeiros) e, por último, médicos cubanos.
O contrato vale por três anos. Em 2016, no entanto, o governo abriu a possibilidade para renovação dos contratos a cubanos que possuem família no país, desde que com aval de gestores municipais.
‘RUPTURA INEVITÁVEL’
O fim da parceria com Cuba no Mais Médicos gerou reação de entidades.
Para o presidente do Conasems (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde), Mauro Junqueira, com a troca de governo, a ruptura com Cuba já era esperada —mas não de forma antecipada como ocorreu. Segundo ele, caso não haja rapidez na adoção de medidas para reposição das vagas, há risco de desassistência. O problema ocorreria especialmente nas regiões Norte e Nordeste, onde há maior número de médicos cubanos.
“A ruptura é inevitável, mas precisa ter prazos. Não estamos tratando de mercadoria, estamos tratando de vidas. Cada médico fica em equipe que atende uma média de 3.400 pessoas. Se pegar 8.500 médicos, são 24 milhões de brasileiros. Não dá para retirar de um dia para o outro”, afirma.
Em setembro, a Folha mostrou que, desde o início do ano, vagas abertas após a saída de médicos ao fim dos contratos não têm sido repostas. De acordo com o Ministério da Saúde, a ideia é que um novo edital seja lançado até o fim deste ano em conjunto com a mudança nas regras para distribuição de médicos —o que ainda não ocorreu.
“Temos 1.600 vagas do programa abertas há algum tempo, e agora a possibilidade de sair mais 8.000. É possível fazer uma reposição com brasileiros? É. Mas precisa de tempo”, diz Junqueira, que lembra que os últimos três editais abertos no programa tiveram vagas preenchidas apenas com brasileiros.
O governador reeleito do Piauí, Wellington Dias (PT), também afirmou que o Nordeste será prejudicado com a retirada dos médicos cubanos. Segundo ele, o atendimento à população será afetado. Ele defende a permanência dos profissionais até que haja médicos brasileiros capazes de atender à demanda.
“Vamos ter regiões do Brasil que vão voltar a não ter assistência médica. Certamente o Nordeste é prejudicado. Nesse sentido, vamos defender que se mantenha o cronograma traçado, que se faça a substituição [dos cubanos] quando tiver a segurança de que há outro profissional brasileiro ou brasileira para trabalhar naquele município, naquela região”, afirmou.
Já o Conselho Federal de Medicina informou, em nota, que o Brasil “tem médicos em número suficiente para atender a população”. Desde o lançamento do Mais Médicos, a entidade tem se posicionado de forma crítica à dispensa de revalidação do diploma.
Para a autarquia, o ideal seria que o governo criasse uma “carreira de estado” para estimular médicos a atuarem em áreas distantes e de difícil provimento.
‘INACEITÁVEIS’
Ainda na mesma nota em que anunciou o fim da parceria, o governo cubano afirma que, desde a implantação do programa, 20 mil profissionais atenderam a mais de 113 milhões de brasileiros, em 3.600 municípios. O Ministério de Saúde de Cuba lista a atuação de seus médicos em países da América Latina e da África.
Também chama de inaceitáveis as ameaças de alterações no termo de cooperação firmado com a Opas e diz que o povo brasileiro saberá a quem responsabilizar pelo fim do convênio.
Em 2017, já na gestão Michel Temer (MDB), o governo de Cuba chegou a suspender o envio de um grupo de médicos devido ao aumento no número de ações judiciais de profissionais daquele país que buscavam a permanência no Brasil e no Mais Médicos além dos três anos iniciais previstos no contrato.
Na ocasião, o Ministério da Saúde contabilizava 88 ações de médicos cubanos que pediam para continuar no programa e no Brasil. A pasta federal já havia anunciado a intenção de substituir parte dos médicos cubanos por brasileiros.
Essa, porém, não é a primeira vez que o governo discute rever a presença de cubanos no Mais Médicos.
Em 2016, o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, anunciou que a pasta passaria a reduzir o número de médicos cubanos no programa. Na época, cerca de 11.400 profissionais de Cuba trabalhavam no Mais Médicos. Hoje, esse número é de 8.332.