Cigarros eletrônicos: Anvisa vai abrir consulta pública em processo que decide se mantém venda proibida
Projeto no Senado pretende liberar a comercialização do cigarro eletrônico no Brasil (Foto: Jornal Nacional/ Reprodução)
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu nesta sexta-feira (1°) abrir para consulta pública para receber contribuições da sociedade sobre se deve manter o veto ao comércio, fabricação e importação de cigarros eletrônicos no Brasil. O prazo para manifestação dos interessados será de 60 dias.
A decisão pela abertura da consulta pública foi tomada em votação unânime dos diretores da Anvisa, que seguiram o posicionamento de Antônio Barra Torres, relator do processo e diretor-presidente da agência.
Apesar do voto, o relator declarou que seu posicionamento estava alinhado com o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça, que são contra a liberação da venda. “(O posicionamento está) também alinhado com as sociedades médicas brasileiras conforme já as enumerei e aos diversos outros organismos a quem enviamos consultas”, afirmou Barra Torres.
Os cigarros eletrônicos são proibidos no Brasil desde 2009 pela Anvisa. À época, a agência decidiu pela proibição do comércio e propaganda dos dispositivos porque não haveria dados científicos que comprovassem que, de fato, eram seguros.
Desde 2009 a agência decidiu fazer uma revisão. A medida não era obrigatória, mas agência alegou a necessidade de rever os impactos da regra e considerar os novos dados sobre os cigarros eletrônicos.
A discussão acontece em meio à pressão da indústria que quer a liberação e um projeto que corre no Senado Federal também pedindo que seja permitido o comércio dos vapes. O principal argumento do lobby é de que permitir a venda facilitaria o controle. Do outro lado, especialistas e entidades médicas se opõem à mudança na regra alegando que os dispositivos são um risco à saúde pública. (Veja abaixo o que diz quem é contra e quem é a favor)
Processo de revisão
A primeira etapa da revisão da regra foi a “Análise de Impacto Regulatório”, que avaliou o que ocorreu no país com a proibição, quais os desafios com a circulação do dispositivo e o que vem acontecendo também no exterior – nos Estados Unidos e no Reino Unido, por exemplo, eles são permitidos.
O documento reuniu pareceres de universidades, como a John Hopkins, nos EUA; órgãos governamentais, como o Instituto Nacional do Câncer (Inca); associações médicas e a indústria do tabaco. No fim, concluiu por duas alternativas:
- A manutenção da norma atual, com a proibição.
- Fazer ajustes na regra atual, mas incluindo alguns itens como a necessidade de revisão a cada três anos e a proibição também da fabricação.
A permissão era uma alternativa levantada pela agência antes da avaliação de impactos, mas, diante do resultado das discussões, que mostrou que ainda não há base científica para dizer que vapes são melhores que cigarros e o risco de aumentar o tabagismo, a Anvisa descartou essa hipótese.
Com a decisão de consulta pública, a Anvisa vai abrir o processo para que a sociedade possa opinar sobre a regulamentação.
Lei no Senado Federal
Enquanto a Anvisa discute a regulamentação, tramita no Senado Federal um projeto que libera os cigarros eletrônicos. A medida foi proposta pela senadora Soraya Tronique (Podemos) em outubro, depois de uma audiência pública que reuniu representantes de entidades médicas e empresas produtoras de cigarro eletrônico.
O argumento da senadora é o de que não há regulamentação no Brasil, apesar de, na verdade, haver uma, que é pela proibição. A parlamentar também vê a liberação como oportunidade de coleta de impostos das empresas que venderiam o vape no país.
O texto da senadora prevê que, antes da autorização, os produtos sejam registrados na Anvisa. Ou seja, ainda que aprovada no Senado, a liberação dependeria da chancela da agência.
O projeto ainda não passou pelas comissões, e não há prazo para que isso aconteça ou previsão para que seja colocado em votação.
Veja o que diz quem é contra e quem é a favor
- Cigarros eletrônicos são melhores que cigarro comum?
O que diz quem é a favor da liberação: A indústria argumenta que os cigarros eletrônicos funcionam como “redução de danos” para quem já fuma cigarro comum. Ou seja, de que são uma forma menos prejudicial de acesso à nicotina para pessoas viciadas. Para isso, apresentam um relatório feito pelo King’s College, do Reino Unido, que diz que vaporizadores são 95% menos prejudiciais que o cigarro comum.
O documento chega a essa conclusão a partir de uma revisão de artigos publicados e de pesquisas feitas anteriormente por outros institutos com pessoas que usaram cigarro eletrônico, mas durante um curto prazo.
O que diz quem é contra a liberação: Os especialistas médicos refutam o argumento porque dizem que a análise não oferece base para concluir o risco 95% menor.
“Essa classificação de risco é uma falácia que não tem qualquer evidência científica. Pudemos ver isso com a crise nos Estados Unidos com pessoas morrendo por doenças associadas aos vapes. Precisamos lembrar que é um dado que vem de uma indústria que, quando apresentou o cigarro tradicional, jurou que a nicotina não viciava. Como podemos confiar? “— André Szklo, epidemiologista especialista em controle do tabaco do Instituto Nacional do Câncer.
O médico e coordenador da Comissão de Combate ao Tabagismo da AMB, Ricardo Meireles, explica que não existe redução de danos para o tratamento do tabagismo, que mata cerca de 400 pessoas por dia no Brasil. A única forma é cessar o uso de qualquer fumo.
“Não existe redução de danos no tabagismo. Estamos vivendo agora o que vivemos um século atrás, quando o cigarro começou a circular. No começo, as pessoas não sabiam que o cigarro fazia mal e foram muitas mortes até que soubéssemos a verdade. Hoje, o cigarro eletrônico está no mercado há poucos anos e já tem uma doença para chamar de sua, que é a evali. (Leia mais abaixo.) Não podemos deixar a história se repetir”, explica.
É preciso regulamentar os cigarros eletrônicos
O que diz quem é a favor: A indústria alega que é preciso regulamentar para que haja regras sobre o consumo e que as pessoas parem de consumir o produto clandestino.
“Somente a regulamentação poderá estabelecer requisitos sobre quais produtos poderão ser comercializados e prevenir o consumo de jovens que, sob nenhuma hipótese, devem ter acesso a esses produtos”.
O que diz quem é contra: Segundo Margareth Dalcomo, presidente da SBPT e membro da Academia Nacional de Medicina, o cigarro eletrônico é regulamentado no Brasil: ele é proibido. Ela explica que desde 2009 a Anvisa criou uma regra ao proibir a produção e comercialização dos dispositivos no país.
Segundo Dalcomo, as entidades médicas têm unido esforços e reunidos pneumologistas, cardiologistas, oncologistas e pediatras para endossar o coro contra qualquer mudança na regra.
“Desde 2009 nós temos uma regulamentação feita pela Anvisa que proíbe a comercialização de qualquer produto que tenha tabaco aquecido e é essa regulamentação que nós defendemos. Pensar em mudar isso é um equívoco, uma inversão de valores enorme” — Segundo Margareth Dalcomo, presidente da SBPT e membro da Academia Nacional de Medicina.
O consumo de cigarros eletrônicos é crescente e já é uma questão de saúde pública
O que diz quem defende: A Abifumo, que representa as empresas que produzem cigarro, explica que o número de usuários dos dispositivos no Brasil quadruplicou nos últimos 4 anos e chegou a 2,2 milhões de usuários. Os números são da pesquisa Ipec divulgada este ano. Com o aumento, argumentam que seria necessário liberar para controlar quem tem acesso aos cigarros eletrônicos.
O que diz quem é contra: Os especialistas dizem que o número cresceu, mas é pequeno se comparado ao volume de fumantes no Brasil, cerca de 25 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Com isso, defendem que o melhor cenário é seguir proibido para frear a crescente.
“O momento agora é barrar, se tem 2,2 milhões de pessoas usando isso, a gente precisa agir para que elas não migrem para o cigarro convencional e impedir a expansão de novos fumantes. Agir diferente disso, é cometer o mesmo erro do século passado ao liberar o cigarro convencional que leva milhares de pessoas à morte” — Ricardo Meireles, pneumologista e Coordenador da Comissão de Combate ao Tabagismo da AMB.
- O produto é feito para adultos
O que diz quem defende: A indústria explica que o produto é feito para pessoas adultas como contenção de danos ao cigarro e que optaram por não parar de fumar.
O que diz quem é contra: Os especialistas apontam que os aromas e sabores de frutas são um apelo aos mais jovens e os vapes são moda entre adolescentes. Nos Estados Unidos, que permite a comercialização dos dispositivos, uma das empresas fabricantes teve que pagar uma multa de R$ 2,3 bilhões por fazer propaganda de cigarros com apelo para menores de idade.
No Brasil, segundo a pesquisa da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), feita em 2019, 60% das pessoas entrevistadas, de uma amostragem de mais de 52 mil, disse que usava vape e que nunca tinha fumado antes. Ou seja, não são parte dos usuários de cigarro convencional, mas um novo público dependente de nicotina. Além disso, a maioria tinha até 24 anos.
“Eu tenho atendido adolescentes com pulmões que parecem de uma pessoa de 90 anos. Eu cheguei a falar com uma escola particular de elite no Rio de Janeiro depois de atender pacientes que diziam fumavam no banheiro. São adolescentes dependentes químicos sem saber” — Margareth Dalcomo, membro da Academia Nacional de Medicina.
O epidemiologista do Inca, André, reforça que o posicionamento de mercado da indústria de cigarro eletrônico é de, segundo ele, criar uma geração de dependentes de nicotina. Isso porque o perfil do usuário é de não fumantes, jovens e com mais escolaridade.
“A lógica principal dos vapes é criar uma geração de dependentes de nicotina. Até por isso o apelo por aromas e sabores. Eles chegam a pessoas que não têm o perfil de um fumante convencional e as tornam viciados. Com isso, um jovem que usa vape tem quatro vezes mais chance de usar o cigarro comum, que também é mais barato”, explica.
Os cigarros eletrônicos não causam maior dependência
O que diz quem defende: Os cigarros eletrônicos têm nicotina. A indústria diz que, apesar disso, ela é uma substância inofensiva. Já que são o monóxido de carbono, o alcatrão e outros produtos químicos presentes no cigarro convencional que estão relacionados a danos à saúde.
O que diz quem é contra: A nicotina é uma substância altamente viciante e, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, não há quantidade segura para o consumo. Segundo os especialistas, é por causa da nicotina que as pessoas usam o cigarro — já que é ela quem causa a dependência do fumo. Os vapes têm sal de nicotina, o que faz com que o composto seja entregue em concentrações até vinte vezes maiores no corpo.
“O cigarro eletrônico tem a nicotina em forma de sal, isso entrega mais nicotina e, por isso, tem um potencial muito mais viciante que o cigarro normal. Os relatos são de pessoas que começam com algumas baforadas e perdem o controle sobre o uso. Ou seja, a indústria diz que é mais seguro, mas na verdade está colocando a pessoa em uma armadilha para que ela se torne dependente química”, diz André Szklo, epidemiologista especialista em controle do tabaco do Instituto Nacional do Câncer.
Margareth Dalcomo diz que a quantidade de nicotina é preocupante também para adolescentes.
“Esses dispositivos têm uma concentração de nicotina muito alta. Com sabores e aromas, eles estão chegando nos adolescentes que são muito mais impactados por esse alto teor de nicotina. Os vapes estão criando uma legião de viciados muito precoces” — Margareth Dalcomo, presidente da SBPT e membro da Academia Nacional de Medicina.
Evali: doença causada por vapes
Apesar de ainda não existirem indícios no médio e longo prazo sobre a segurança, em menos de duas décadas dos dispositivos no mercado, ele já deu origem a uma doença específica e os estragos são devastadores. Uma lesão pulmonar que pode levar à morte em um curto espaço de tempo: a evali.
A doença foi descrita primeiro nos Estados Unidos, depois de um surto de jovens sendo internados com lesões pulmonares em 2019. Só no país, foram cerca de 70 mortes, segundo o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), órgão de saúde norte-americano.
O médico pneumatologista Felipe Marques, do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, publicou um artigo sobre a doença após atender uma paciente com uma pneumonia que se repetia sem explicação até descobrir que se tratava de um caso de evali.
“O vape tem substâncias tóxicas que agridem nosso pulmão, então ele responde tentando evitar o agressor recrutando células do sistema imunológico que podem ‘machucar’ nosso sistema pulmonar causando lesões”, explica Marques.
No Brasil, há nove casos registrados de evali de 2019 a 2020, segundo a Anvisa, No entanto, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) alerta que a doença é subnotificada. Ou seja, há um número oficial de casos menor que a realidade. Isso porque, no país, a notificação de casos é voluntária e não compulsória – o que é uma demanda da classe médica para ter uma real dimensão do problema no país.
Graxa no pulmão e três paradas cardíacas
Arnaldo Machado tinha uma rotina saudável e se surpreendeu com a rapidez com que ficou doente por causa do cigarro eletrônico.
“Fumar cigarro eletrônico custou sete meses da minha vida. Hoje, digo que o cigarro eletrônico é uma máquina de matar e vai, além disso, colocar nosso sistema de saúde sob pressão se continuar [nesse ritmo]” — Arnaldo Machado, 47 anos, farmacêutico diagnosticado com evali.
Ele conta que nunca tinha fumado cigarro comum antes de ter acesso ao cigarro eletrônico. Ele usava o dispositivo de uma empresa norte-americana em formato de pen-drive que havia ganhado de presente. A essência de menta o levou a pensar que não seria prejudicial.
“Tinha um sabor de menta gostoso, suave, que até parecia inofensivo. Não tinha nada a ver com cigarro comum. Passei a usá-lo socialmente. Depois, dava umas duas tragadas por dia. Fiz isso por nove meses até ver a minha vida mudar completamente”, relembra.
Em uma certa manhã, ele decidiu dar uma tragada, sentiu dor no peito e desistiu. No fim do dia, tentou de novo e, na sequência, teve febre e buscou o médico.
“Quando vi a imagem do meu pulmão na radiografia, eu não acreditei. Estava completamente comprometido. Dois dias depois, já não conseguia respirar. Parecia que eu estava morrendo”, Arnaldo Machado, 47 anos.
Ele precisou ser intubado às pressas e, depois, fazer uma traqueostomia, enquanto os médicos corriam contra o tempo para entender o que acontecia com ele.
Covid, tuberculose, pneumonia – tudo foi investigado até saberem que ele estava usando cigarro eletrônico e o diagnosticarem com evali (sigla em inglês para lesão pulmonar induzida pelo cigarro eletrônico).
“O problema é que o cigarro eletrônico ele forma um vapor, aquele vapor ele forma um óleo, esse óleo atinge os alvéolos pulmonares, forma uma espécie de uma graxa e impede a troca gasosa de oxigênio com CO2 e teu pulmão entra num colapso. E foi exatamente o que aconteceu comigo”, conta Arnaldo Machado, farmacêutico diagnosticado com evali.
G1