‘Não faz bem para o país Lula preso’, diz Marcos Valério, operador do Mensalão
São 12h15 quando se abre a segunda porta de ferro que leva a ala reservada aos presos do regime fechado na Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) de Sete Lagoas (MG).
Quem controla a entrada é Marcos Valério Fernandes, 57, condenado a 37 anos e cinco meses de prisão pelo Mensalão do PT e também acusado pelo mesmo esquema em governos tucanos.
De prancheta e caneta na mão, o ex-publicitário acusado de ser o operador do sistema de corrupção é um dos oito membros do CSS (Conselho de Sinceridade e Solidariedade), um dos pilares de funcionamento da unidade.
O CSS se ocupa da disciplina, tarefa que nas Apacs cabe aos chamados recuperandos, como passam a ser qualificados os presos que deixam o sistema prisional comum para cumprir pena em um presídio sem agentes penitenciários nem armas.
Marcos Valério foi transferido para uma das 38 Apacs do estado em julho de 2017, quando o Tribunal de Justiça de Minas Gerais atendeu a um pedido da Polícia Federal.
Deixar o presídio de segurança máxima Nelson Hungria, em Contagem (MG), onde cumpriu três anos e sete meses de prisão (após seis meses na Papuda, em Brasília), foi uma das condições de um acordo de delação premiada ainda em andamento.
Em uma das mesas do refeitório, onde dali a pouco seria servido o almoço preparado pelos próprios presos –carne cozida com batata, arroz, feijão e beterraba (maçã e banana de sobremesa)–, Marcos Valério discute as condições para quebrar o silêncio. “Faz dez anos que não dou entrevistas”, diz, com voz suave, cabelos crescidos e tingidos de preto.
O visual cabeça raspada da época que estourou o escândalo foi adotado em solidariedade ao filho caçula que morreu de câncer, lembra ele com olhos marejados. A quimioterapia para tratar um linfoma também o deixaria careca por um tempo.
É um Marcos Valério saudável e disposto que pula a refeição da prisão e prefere comer granola. Conta que emagreceu dez quilos em sete meses de Apac, ganhou músculos e se casou em 26 de janeiro com Aline Chaves, sua companheira há quase cinco anos. “Sou muito grato. Decidi dar a ela o meu nome.”
Ele conheceu a estudante de nutrição baiana de 26 anos seis meses antes de começar a cumprir pena pelo Mensalão. Relata que já havia se separado de Renilda, mãe de seus dois filhos, um garoto de 16 anos e uma jovem de 27.
“Erros cometidos por mim e por um monte de gente me custaram muito caro. Custou a educação do meu filho, custou quase cinco anos longe deles. Quando minha filha precisou de pai em momentos difíceis, eu não estava presente. Perdi o casamento dela, o nascimento do meu neto.”
Os filhos, assim como a mulher, costumam visitá-lo nos finais de semana. O novo casal tem direito a três visitas íntimas por mês.
A seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva à Folha, concedida na sala transformada em ateliê, onde Valério dá aulas de pinturas aos companheiros de regime fechado e pinta telas que enfeitam a sala da administração do presídio.
APAC X PRISÃO COMUM
“As pessoas lá fora pensam que isso aqui é privilégio. Não. É a lei. É o cara trabalhando, produzindo, pensando, respeitado. Cuidando da própria comida, da própria roupa, do próprio dormitório e em contato com a família de forma respeitosa.”
“Você não vê droga na Apac. Não vê celular. No presídio, você vê droga e celular. Qual é o milagre que esse povo faz aqui com menos dinheiro do que aquele monte que vai para a Nelson Hungria? Deve ser alguma coisa que faz com que o dinheiro não saia pelos dutos.”
“No sistema tradicional, a sociedade já perdeu a guerra contra o crime. O sistema prisional comum é uma grande universidade, onde os antigos no crime ensinam os mais jovens e vão utilizá-los lá fora. O melhor local para se fazer um exército de marginais, de pessoas carentes e sem perspectivas, é a cadeia.”
“Desculpa, mas as facções só vão crescer e se tornar mais fortes. Não se iluda. Tem político eleito com dinheiro das organizações [criminosas]. Elas estão dentro dos partidos políticos.
“O único oásis que aparece são as Apacs. E está todo mundo querendo ir para ele. No meu caso, o sistema tradicional vende dificuldades e opressões para depois vender facilidades.”
“O certo é fazer pequenas cadeias igual a esta e tirar o Estado da administração porque senão vamos ter corrupção na compra de remédio, na venda de quentinhas. O preso aqui faz a comida dele. Decente. Com toda dificuldade, esse sistema aqui custa dez vezes menos. O Estado está roubando e bem.”
VIOLÊNCIA NA CADEIA
“Quebrei meu punho lá dentro [da Nelson Hungria]. Tem inquérito. Um agente colocou uma algema bem apertada e quebrou o osso [aponta para o punho esquerdo, que tem uma mancha escura no lugar onde o osso calcificou deformado]. Um recado muito bem dado para eu não criar tanto problema. E aí tive que tomar cuidados redobrados.”
“Ninguém processa o Estado. Ninguém põe na cadeia um governador que faz uma cadeia daquele jeito.”
“O Estado é uma força de contenção. Te mantém naquele cercado. Mas dentro ele não te protege. Ele [o preso que é empresário ou bilionário] vai ser obrigado a financiar o crime lá fora. O Estado criou isso quando misturou todos.”
“É mais perigoso viver lá fora do que dentro do sistema. No meu caso, eu aprendi a viver lá dentro e a me proteger. Respeito muitos presos da Nelson Hungria. E sei que eles me respeitam. Dentro do código de honra deles, eu fui muito leal a eles e eles a mim.”
TREMEMBÉ
Marcos Valério se recusa a falar sobre os cem dias que passou na Penitenciária 2 de Tremembé (SP), entre outubro de 2008 e janeiro de 2009, quando teve prisão preventiva decretada em um processo em que é acusado de forjar um inquérito para prejudicar fiscais que haviam multado a cervejaria Petrópolis.
Após ser espancado várias vezes na cela, ele teria conseguido proteção do PCC (Primeiro Comando da Capital) para se manter vivo dentro da penitenciária.
“Não tenho interesse de conversar sobre esse assunto. Já passou”, disse, sobre os episódios que deixaram cicatrizes nas costas e resultaram em implante dos dentes da frente da arcada superior.
Ele também não quer falar sobre os processos de delação que negocia com a Polícia Federal e com o Ministério Público em Minas e no Distrito Federal. “Teria que entrar no mérito de certas coisas e não quero. Não posso.”
Discorreu sobre a prisão do ex-presidente Lula, sobre o momento político e o impacto do escândalo do Mensalão em sua vida e da família.
LULA NA CADEIA
“Fico triste. Pelos familiares e também pelo transformador que Lula foi. Apesar de todos os erros que cometeu. Tenho certeza de que ele vai analisar e chegar a esta conclusão. Mas ele foi um transformador. Um ícone, né? Eu fico triste. Não faz bem para o país Lula preso.”
“Parei para pensar sobre o preço que a transformação paga. Naquele momento [governo Lula] era uma transformação por caminhos errados. [O Mensalão] Era para tentar andar com algumas propostas que o governo tinha e nós aprovamos. Era preferível não ter feito, esperado, a pagar o preço que paguei.”
“Vamos ver fragmentação de partidos. Novos sistemas. O Brasil vai ter que achar um caminho. E não é um novo golpe de Estado. É a democracia. É errar novamente.”
MENSALÃO
“É um cunho que a imprensa criou para vender jornal, mas nunca foi Mensalão. É outra história. Não posso entrar muito nesse assunto, pois estou negociando delações.”
“O maior [arrependimento] é o de conhecer, como eu conheço, a máquina e ter participado. Era preferível fechar todas as agências de propaganda e ir criar galinha.”
“Não é só o dinheiro. É o poder. É agradável, mas, depois que passa por ele, você tem nojo. Hoje, tenho nojo de tudo aquilo. A política é bonita. O ruim dela são certos políticos e certas traições.”
“O que nós estamos assistindo é um processo de caos, no qual ressurgem as esperanças. Assistimos lideranças antigas sumirem e novas surgirem. E não quer dizer que estejam corrompidas pelo sistema.”
PINTOR
O operador do Mensalão espera deixar a prisão até o fim do ano. Está na expectativa da progressão do regime para o semiaberto, como já ocorreu com seus ex-sócios, o ex-ministro José Dirceu e outros condenados pelo Mensalão do PT.
“Eu fico feliz [com a saída deles]. É sinal de que a minha está chegando.”
Pelas contas de Valério, ele teria direito a pelo menos 500 dias de remissão da pena, caso fossem computados trabalho, estudo e leituras feitas ao longo de quase cinco anos em regime fechado. “A juíza negou o pedido.”
Ele mostra o caderno com as fichas dos romances lidos e resumidos, conforme exige a Lei de Execução Penal, ente eles “O Negociador” e “Cães de Guerra”, de Frederick Forsyth; “O Sol Também se Levanta”, de Ernest Hemingway; e “O Poderoso Chefão”, de Mario Puzo.
Carrega também uma apostila do Centro de Educação Profissional para assistente administrativo, iniciado em 28 de fevereiro. A prova para o curso de office-boy estava prevista para 14 de abril.
Valério chegou a ter 22 alunos nas aulas de pintura na Apac. Atualmente, tem um, Gilmar Henrique dos Santos, 32, condenado a nove anos de prisão por tráfico de drogas. Ele está terminando uma tela gigante do Mickey para presentear o filho que completa um ano: “Aprendi muito com o doutor Marcos.”
Já Anderson Vinicius, 23, pintou um quadro com a face de Che Guevara. Indagado sobre a figura histórica, o ex-aluno de Valério diz que foi o professor que lhe apresentou. “Che foi um revolucionista (sic). Todos nós temos um dentro de si.”
“Preso pode não ter cultura, mas é inteligente, tem dom”, diz o publicitário, que ensina técnicas de desenho e pintura. Conhecimentos que diz trazer dos tempos de dono de agências. Hobby que o ajudou a lidar com a privação de liberdade.
CHEGADA À PRISÃO
“Foi terrível. Momentos de muita solidão, muito choro. Não tem ninguém que não chora. Na hora que fecha a porta de uma cela, chora sozinho.”
“Há muita humilhação. Começa com a fila. As visitas têm que chegar de madrugada. Tem a revista. Às vezes, o ‘body scanner’ está estragado. A mulher precisa abaixar a calcinha, colocar um espelho e abaixar três vezes. Imagina o que é isso para minha mãe de 84 anos? Para a filha, a a esposa?”
“A depressão vem nos primeiros dias. Levantar era uma vitória. Depois, vem a fase de viver o dia a dia. E isso vai nos tornando mais insensíveis. As coisas se tornam mais brutas. E, no sistema tradicional, essa brutalidade é mais evidente.”
DISCIPLINA
Os tempos brutos parecem ter ficado para trás. Há cinco meses, Valério foi convidado pelo colega de prisão Junior Mendes de Araújo para integrar o Conselho de Solidariedade e Sinceridade.
Toda semana, eles se reúnem para avaliar o comportamento dos 62 presos do regime fechado.
Na avaliação disciplinar de abril, Valério e Marcos Antonio Oliveira, companheiros do dormitório 2, que dividem com outros quatro presos, levaram uma dupla de bolinhas amarelas. Elas correspondem a infrações leves, como esquecer o crachá ou deixar a cama sem fazer.
No caso, tiveram discussão acalorada, sem xingamentos. Ambos recorrem da punição dada pelo colegiado. Se confirmada, ficam sem lazer.
Cinco bolinhas amarelas equivalem a uma vermelha (infração de média gravidade, como falar de crimes dentro da prisão). Duas vermelhas correspondem a uma preta, conferida por atos mais graves, como brigas e ameaças, que levam à expulsão da Apac.
As regras rígidas são dignas de colégio militar. “A adaptação é meio complicada. É difícil se acostumar quando você sai do sistema tradicional, onde as regras não são as certas”, diz Valério.
LIÇÕES
“Dentro do sistema prisional, cresceu em mim o respeito por uma pessoa chamada Edir Macedo [líder da Igreja Universal do Reino de Deus e dono da Rede Record]. Ele leva dentro da religião dele um consolo aos presos. Eu respeito muito a Igreja Universal, que pode ter os erros dela, mas a Católica também teve a Inquisição.”
“Mesmo encastelada entre muros, a sociedade nunca vai estar protegida dela mesma. A marginalidade é um excremento dela. E vai chegar um tempo que vai produzir tanto que vai morrer sufocada se não tomar a atitude de reciclar. Prefere deixar lá, não ver, do que recuperar.”
NA TELONA
Valério diz que pensa em escrever um livro quando sair da prisão. Não faz anotações nem diário. “Está tudo aqui”, aponta para a cabeça.
Foi procurado por um cineasta famoso, que quer levar sua história para a telona. “É o José Padilha?”. Sorri e desconversa: “Não sei. É você quem está dizendo.”
Não quer para si o papel de vítima. “Ninguém me trouxe até aqui. Eu mesmo me trouxe, com meus próprios pés. Seria leviano julgar, nominar um ou outro. É um conjunto de coisas. Eu tinha o livre arbítrio de não ter participado.”
Ainda não sabe o que pretende fazer quando deixar a prisão. “A única coisa que sei é que tenho dois filhos e uma mulher para sustentar.”
Valério afirma ser possível fazer política e negócios de modo diferente no Brasil pós-Lava Jato. “Não digo que vai acabar a corrupção, mas, pelo menos, vai ficar mais regulado.”