Série de Neymar na Netflix expõe descompasso entre pai e filho
Na sala de uma luxuosa casa na França, um Neymar – de camiseta branca – apresenta a outro Neymar – este deitado no sofá, de bermuda e camiseta número 24 do Los Angeles Lakers – um arquivo de powerpoint sobre o ecossistema da empresa Neymar Sports Marketing (NR Sports).
Um dos noves itens que compõem esse ecossistema é “Neymar Jr”, identificado como “principal asset (até 2026)” e “sucessor NR”. A palavra “asset” (ativo, em inglês) é que mais aparece nos slides, quatro vezes.
“Eu não vou conseguir planejar os próximos dez anos se eu não tiver você. O líder natural dessa empresa é você”, diz o Neymar mais velho. “Primeiro que eu não ia querer assumir a empresa”, responde o mais novo.
É essa relação de pai e filho que entrelaça toda a trajetória da série “Neymar, O Caos Perfeito”, da Netflix, que estreia no próximo dia 25. Com direção de David Charles, o documentário abarca o período entre 2019 e 2021, mas tem digressões para recapitular a carreira do hoje atleta do Paris Saint-Germain.
O seriado de três episódios expõe um novo paradigma da ligação entre pai e filho, empresário e jogador, CEO e marca, gerente e celebridade. Se um dia os dois eram vistos como carne e osso, agora o panorama é muito mais de distanciamento e discordâncias do que de união e consonância de ideias.
Não que a visão do hoje diretor da NR Sports sobre o atleta tenha mudado muito. A série também confirma como, desde o primeiro contrato com o Santos em 2006, sua ideia já era a de que havia em suas mãos uma valiosa oportunidade de negócio.
A transição do filho que precisava da autorização até para mudar o corte de cabelo para a relação atual se dá com a chegada à Europa. Quando os dois vão tirar uma foto no embarque para a Espanha, o pai não quer que o jogador esteja de boné para trás, mas o filho vence a discussão.
No dia a dia da casa de Neymar na França, o que fica demonstrado na série é uma relação que, por mais que envolva o laço paternal, hoje é de descompasso.
Parte desse ruído se dá pelas diferentes visões que pai e filho têm sobre o futuro do jogador de futebol, da celebridade e da marca chamados Neymar.
Há também questões comportamentais. O pai diz ser “chato por proteção”. O filho contesta, reclama que ele fala de maneira agressiva: “Com meus amigos, com funcionário, com segurança”.
O tom sobe, o pai cita a acusação de estupro de 2019 – tema pelo qual o documentário passa rapidamente apenas. Ouve que é hipócrita.
“Eu não gosto de ter essas conversas sobre você porque a gente já começa… Por isso que eu acato tudo [que você diz], para não criar conflito”, diz o jovem.
“Essa relação com o pai é de amor e desavença, de amor e ódio, tem as duas coisas”, afirma o diretor do filme, que diz ter tido acesso total à casa do jogador – há cenas, por exemplo, de refeições e do atleta jogando videogame online e com o filho.
“Tem momentos em que você está super bem com seu pai, tem momentos em que você não está. E há uma outra dinâmica em que a pessoa não é só seu pai, mas a gerente da sua carreira. [O Neymar] passa por um momento de amadurecimento, quer criar controle na sua própria vida. É lógico que vai rolar conflito”, completa o diretor.
Estão entre os entrevistados colegas do jogador (Daniel Alves, Messi, Suárez, Mbappé), ex-jogadores (Raí, David Beckham) e o jornalista Juca Kfouri. Segundo Charles, a pandemia frustrou os planos de conversar com jogadores do Santos.
“A intenção intenção nunca foi calar os críticos. Foi dar uma voz ao Neymar que ele nunca tem a oportunidade de ter – pela natureza das mídias sociais e da mídia. São três horas para dar voz a uma pessoa, sem censura e sem julgamento”, afirma o diretor.
A série mostra alguns momentos dos bastidores da casa do atleta: amigos, o possível retorno ao Barcelona, a família, as férias. E remonta sua carreira, dentro e fora de campo, sempre assumindo o ponto de vista do camisa 10.
Se antes havia a separação clara entre o pai-empresário e o filho-jogador-celebridade, a impressão que fica ao final da série é de uma relação cada vez mais frágil e cada vez mais atravessada por um terceiro Neymar da equação, o asset.
FOLHAPRESS