Sucesso de ‘Round 6’ joga luz sobre desigualdade e falta de esperança na Coreia do Sul
Em um dos primeiros episódios da série sul-coreana “Round 6”, alguns personagens fazem uma eleição entre permanecer em um jogo no qual podem ser mortos a tiros se perderem brincadeiras simples de criança –como cabo de guerra ou uma versão local de “estátua”– ou encerrar a competição.
“Aqui pelo menos tenho uma chance. Mas e lá fora? Não tenho nada. Prefiro ficar e morrer tentando a morrer lá fora como um cachorro”, justifica um dos participantes. “A vida lá fora já é um inferno”, diz outra.
O fenômeno do seriado, um dos mais vistos da história da Netflix, coroando o sucesso da atual produção cultural sul-coreana, jogou luz sobre outro fenômeno recente do país: certo mal-estar e desesperança com o futuro, sobretudo entre os mais jovens.
A sanguinária série do streaming retrata um concurso que recruta centenas de pessoas altamente endividadas e dispostas a morrer, de forma impiedosa e cruel, em troca de um prêmio final de 45,6 bilhões de wons (cerca de R$ 210 milhões).
A trama distópica pareceu ressoar para alguns. “Não preciso de ‘Round 6’ quando já vivo na ‘Coreia do Inferno'”, escreveu um coreano no Twitter na última semana.
“Coreia do Inferno”, ou “Hell Joseon” –Joseon era o nome do altamente hierarquizado império que existiu na península até o fim do século 19–, é como os jovens passaram a chamar o país em meados da década passada em meio à falta “Há um sentimento crescente, especialmente entre os jovens, de que a vida tem ficado tão difícil que é preciso abrir mão de várias coisas, como casamento ou a construção de uma carreira”, diz Namhee Lee, diretora do Centro de Estudos Coreanos da Universidade da Califórnia em Los Angeles (EUA). “O nível de contentamento das pessoas diminui constantemente, à medida que a situação econômica de grande parcela da população vem piorando.”
Parece uma explicação estranha quando aplicada a um dos países mais ricos do mundo (trata-se da 10ª maior economia hoje), mas é preciso comparar a Coreia do Sul de hoje com a mesma Coreia de décadas atrás, segundo a pesquisadora.
A história remonta ao período de dominação japonesa, até 1945, e à Guerra da Coreia (1950-1953), quando o país, arrasado, foi dividido ao meio. O Sul saiu do conflito como um dos países mais pobres do mundo, com PIB per capita comparável ao de nações como Gana e Zimbábue (hoje é semelhante ao de Itália e Espanha).
Com uma agenda de reformas e incentivos econômicos nos anos 1970, o país experimentou um crescimento acelerado, com grande mobilidade social, afirma Anders Karlsson, do Centro de Estudos Coreanos da Universidade de Londres.
“Muita gente se educou, conseguiu bons empregos nas grandes empresas, que cresciam muito. As pessoas se viam como parte de uma história de sucesso. Mesmo que sempre tenha havido desigualdade e pobreza, havia um certo sentimento de que estavam deixando um passado devastador para trás e tudo estava melhorando”, diz.
Esse clima de otimismo, ampliado ainda pela abertura democrática do país nos anos 1980, não resistiu à crise financeira da Ásia em 1997. A Coreia do Sul foi atingida com especial virulência, viu seu PIB cair mais de 5% e precisou recorrer a ajuda do FMI (Fundo Monetário Internacional).
No fim, o país conseguiu se reerguer rapidamente, mas a crise gerou uma espécie de dois sistemas de trabalho no país: o formal, para uma minoria bem escolarizada, e o informal, com contratos temporários e sem garantia de direitos trabalhistas, segundo Karlsson.
O índice de desemprego tem oscilado entre 3% e 4% desde o começo do século, mas estimativas apontam que mais de 35% dos empregados hoje estão em situação irregular, ainda que não entrem na conta dos desempregados. Pesquisas apontam que trabalhadores regulares costumam receber até duas vezes o salário dos informais.
O criador da série “Round 6”, Hwang Dong-hyuk, disse em entrevistas que o protagonista da trama foi baseado nos organizadores de uma grande greve por melhores condições de trabalho em 2009 na Ssangyong Motors, uma das maiores montadoras do país – em dado capítulo, o personagem faz menção a passagem semelhante.
Clark Sorensen, professor emérito da Universidade de Washington e também especialista em Coreia, chama a atenção também para a grande competitividade presente no país. Só com muito estudo extracurricular pode-se entrar nas melhores universidades do país (a pública Universidade Nacional de Seul, citada na série, e a privada Universidade Yonsei) e só os egressos dessas instituições conseguem os melhores postos de trabalho.
“Há um sentimento generalizado entre a juventude coreana de que não há bons postos de trabalho o suficiente para todos que merecem”, diz.
Soma-se ainda o endividamento individual e a desigualdade social, temas abordados em “Round 6”, e os altos níveis de suicídio do país, entre os maiores do mundo.
Tudo isso, para Anders Karlsson, mudou a percepção das pessoas de que quem se esforça consegue alcançar o sucesso. “Não há mais a sensação de que quem estudar muito e trabalhar duro vai melhorar de vida. Há um forte sentimento de frustração nas pessoas”, afirma.
O chamado “hallyu”, onda de soft power coreano que arrebatou o globo na última década, ganhou terreno com as ensolaradas bandas de k-pop, com BTS como principal expoente. Mas a frustração e o desencantamento vêm ganhando espaço entre a produção audiovisual coreana de alcance global –com “Round 6”, mas também o premiado “Parasita”, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e do Oscar de melhor filme.
Mais e mais “doramas” retratam o mal-estar da juventude. E a “hell Joseon” já tem dado lugar a um novo mote: “Tal-Jo”, ou “fuja da Coreia”.
FOLHAPRESS