O cantor e compositor Belchior, no clássico “Princesa do meu lugar”, de sua autoria, fala sobre a partida para o mundo além dos limites da própria aldeia, em busca de voos mais altos. Mas não é inflexível. Na música, voltar ao ponto de partida para beber água na fonte não é algo fora de cogitação. Na vida real, no entanto, por razões que nem Freud explica, o poeta não acertou o caminho de volta, e acabou se perdendo estrada a fora.
No mundo capitalista em que vivemos, a competividade é predominante. Não basta ter talento e capacidade para chegar ao topo, principalmente, quando se é nascido no Nordeste brasileiro, região discriminada por parte imbecilizada do resto do país.
A maioria dos artistas, para chegar ao ápice da carreira e ser reconhecida nacionalmente, é obrigada a sair do seu lugar e viver nas metrópoles, onde passa pelas experiências necessárias à almejada guinada de 90 graus na sua vida.
Alguns ídolos, no entanto, optam por ignorar essa lógica e nunca arredam o pé do seu lugar de maneira definitiva. Na música – para nos atermos à arte com a qual iniciamos este artigo –, há quem prefira se inspirar cotidianamente na beleza das paisagens conhecidas e na riqueza das histórias do seu povo.
Conheço um para quem os pés de mandacaru, baraúna e juá, por exemplo, fazem parte da fauna que lhe inspira. Em vez do céu deformado pelo concreto dos arranha-céus, a singeleza do luar do sertão, retratado na poesia de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco. Em vez de fumaça ou flores de perfume exótico, o cheiro de terra molhada e de marmeleiro, quando a chuva recobre de verde o que antes era torrão.
Vez por outra, ele é pego trafegando pelas ruas do seu lugar, pedindo a opinião das pessoas que testemunharam o seu crescimento a respeito das músicas a serem incluídas no seu repertório musical.
Tocando, cantando e encantando multidões, a sua figura é reconhecida por todos. Mas ninguém imagina as esquinas que ele precisou dobrar, as pedras das quais precisou desviar nem as montanhas que teve de atravessar para chegar aonde chegou. O sucesso não veio a galope.
Desde menino, junto com seus irmãos, já tocava nas praças do lugar. Era a época do Trio Mirim. Na adolescência, montou um conjunto de bailes que se chamou, inicialmente, The Black Cats. O nome estrangeiro durou pouco; logo depois, passou a ser conhecido como Os Tropicais de Monteiro.
Iniciou seu voo solo cantando “Lembranças”, “Pedido a São João”, deixando claro ao mundo “Como é lindo o meu sertão”. Mas foi preciso tocar muito “Forró maneiro” Nordeste a dentro para que o reconhecimento chegasse, lépido e fagueiro, “Que nem vem vem”.
Sem jabá, carregando nas costas a sanfona e a beleza da música nordestina de qualidade, Flavio José é considerado o sucessor de Luiz Gonzaga e Dominguinhos. Mesmo com todas as honrarias, nunca mudou de endereço. Mantém-se apegado às raízes, mesmo depois de se tornar a estrela mais reluzente da constelação que enche de brilho o céu do seu (e meu) lugar.
Sérgio Bezerra
OPIPOCO